UM PONTO NO HORIZONTE


Uma história de amor na Serra

PARTE I

É Dezembro e faz um frio que gela os corpos.

Estamos numa aldeiazinha do interior, na encosta da Serra da Estrela.

Tem poucas casas esta pequena aldeia. No centro, abre-se um grande largo, com uma linda fonte, onde jorra água noite e dia.

À volta dessa fonte, alinham-se uns banquinhos de pedra, gelados, mas as pessoas da aldeia não sentem o frio da pedra, porque quando por ali vão sentar-se, é o calor humano dos vizinhos e amigos que encontram, pois aí encontram sempre alguém que as espera para dois dedos de conversa. E, logo ao lado, têm a igreja onde o seu confessor as espera.

Ocupam, assim, o vazio que a solidão lhes deixa nas suas vidas.

É ali naqueles modestos bancos de pedra que com amigas e amigos, saboreiam o convívio dos dias e revivem o passado.

Nas lojas do largo da pequena aldeia, os comerciantes tentam vender aos visitantes, artigos típicos da Serra da Estrela, uma recordação da Serra, vá lá..." e assim passam a vida a criar, com produtos, recordações de dias felizes.

A pequena igreja, toda pintada de branco, cuidada com muito carinho, está rodeada por um jardim com flores, plantadas com amor, regadas com a paixão das gentes da terra e, com os seus cheiros e sua beleza, enfeitam esse lugar sagrado que transmite paz e sossego.

Nessa pequena aldeia, vive Maria com os seus familiares; a tia e os primos, família que a adoptou após a morte dos pais, num acidente de viação, quando Maria mais precisava deles, na idade em que as dúvidas assaltavam a sua mente e começavam os porquês:

- "Quem sou eu? " afinal a pergunta que todos fazemos quando somos jovens.

Quando Maria se interrogava sobre a sua infância, sobre o seu corpo, a sua sexualidade, a sua vida social; na idade em que os sentimentos brotam em fluxo, sem pensar, nem medir consequências; na hora em que um conselho duma mãe vale por trinta presenças amigas, Maria ficou só, ficou sem os pais.

Após o funeral, a tia e os primos, que vivem nesta aldeia, foram buscá-la, porque a miúda era da família e sendo eles os seus únicos parentes, não queriam que fosse abandonada à má sorte, na rua ou numa qualquer indiferente instituição e levaram-na para junto deles.

Mas a vontade de Maria ficou paralisada, porque, saindo de sua casa podia perder algo que não tinha, mas que no seu coração sabia ser seu; Pedro, o rapaz que ajudava o pai na lojinha da esquina da rua principal da aldeia, junto ao jardim municipal, o rapaz que punha o seu coração a saltitar, que fazia Maria inventar algo para comprar, só para o poder ver, senti-lo sem o tocar e olhar para ele sem ele se aperceber. Só que Maria não sabia que Pedro sentia o mesmo que ela, só que a timidez não o deixava demonstrar.

Mas como tudo na vida tem um fim, os seus encontros acabaram com a ida de Maria para essa aldeia da Covilhã.

Sem que disso se apercebesse, tal era a dor sentida pela perda dos pais, ela não sabia que a sua vida se ia transformar, a sua família iria ser outra, apenas sabia que estava sendo arrastada pelo infortúnio.

Mas isso já foi há muitos anos e hoje é dia de alegria na família, porque o noivado da sua prima Joana, a sua melhor amiga, vai chegar ao fim, com o casamento aprazado para a véspera do dia de Natal.

Lá fora, as crianças brincavam na neve, com a alegria estampada nos seus pequenos rostos e faziam Maria recordar a sua infância, quando feliz, ela brincava com os seus pais, os seus amiguinhos, as brincadeiras no mar, a correria da sua mãe sempre atrás de si, porque ela era uma criança rebelde, mimada, mas meiga, e tinha o mundo a seus pés, esse mundo que lhe fugiu de um momento para outro, esse mundo que ruiu com a perda dos pais, com o afastamento do seu amor, o Pedro, e hoje, com a casamento de sua prima amiga e dilecta, com a saída dela lá de casa, essas lembranças da sua infância e adolescência, vieram-lhe à mente e tudo isso a deixou triste e estranha.

Algo se começou a desenvolver dentro dela, como uma chamada. Dos livros que lera ao longo dos anos, chegavam à sua memória ecos de grandes amores; livros que descreviam o mar, as ondas, os seus efeitos psicológicos no ser humano; livros que a acompanharam durante todos estes anos e que a fizeram sonhar, mas que já não bastavam para a sua alma inquieta, sedenta de carinhos, alma que, dia após dia, se sentia mais atraída pelo mar.

Maria começou a viver num grande desassossego, a sua tristeza já se reflectia no seu rosto, no seu andar, nas suas palavras.

Os primos, a tia, os amigos já não a satisfaziam, já nada lhe dizia, pois a sua alma estava longe, os seus sonhos estavam longe, ela vivia com o Pedro no seu pensamento, mas um viver de desilusão, porque sabia que jamais o voltaria a encontrar e ela não queria ninguém.

Os rapazes da aldeia convidavam-na para sair e ela, embora amavelmente, sempre recusava os convites, fechava-se nos seus sonhos, nas suas ilusões, mas...

- Acorda Maria - disse a tia, com um suave toque no seu ombro.

- Desculpa tia Sofia, estava longe - respondeu, com um sorriso tímido que aflorou aos seus lábios.

- Rapariga, deixa de sonhar, vem ajudar a tua prima nos preparativos para a festa do casamento, deixa os teus sonhos para outro dia. - Replicou a tia com ar muito alegre.

Maria olhou fixamente a tia e viu essa mulher de cinquenta e oito anos que, apesar dos trabalhos pesados a que a vida a sujeitou, tinha um rosto sempre prazenteiro, uma palavra de amor para todos quantos a rodeavam, um gesto de carinho, para Maria que nem sua filha era.

A tia, que perdera o marido ainda cedo, teve que, sozinha, dedicar a vida ao trabalho, para dar uma educação razoável aos seus três filhos pequenos e, não bastando isso, ainda teve que criar a sua sobrinha menor.

Essa mulher vestida com roupas negras, essa mulher de aspecto frágil, mas com força duma leoa, tudo fez para criar e salvar as suas crias.

Enquanto pensava nisso, Maria agarrou a tia pela cintura e lá foram as duas com um ar feliz. Maria, embora com uma sombra no olhar, foi mostrando uma felicidade que estava longe de sentir e trabalhou o dia todo, sempre com um sorriso nos lábios, como se do seu casamento se tratasse.

O relógio da torre da pequena igreja anuncia as seis horas da manhã, as badaladas, ecoam na serra e, antes da última, Maria acordou sobressaltada pensando que já era tarde.

Finalmente, tinha chegado o grande dia. Levantou-se de imediato e, a correr, foi ao quarto da prima.

- Joana, acorda Joana - sussurrou Maria, passando-lhe as mãos pelo seu rosto angélico, que, mesmo a dormir, sorria.

- Hum, tenho sono...

- Não, Joana, não podes continuar a dormir, hoje é o dia do teu casamento, o Eduardo já passou por aqui há dez minutos, ele já se levantou. - Insistiu Maria excitada.

Joana espreguiçou-se, sorriu e dum salto pôs-se no chão. Agarrou a prima e dançou em volta dela, alegremente e, durante cinco minutos, imaginou-se no lugar da prima e que, dali a umas horas, estaria nos braços do Pedro.

- Hoje não quero esses sonhos, hoje quero ser feliz com a felicidade da minha prima - Pensou Maria e acordou para a realidade, fechando os seus pensamentos.

Ajudou Joana a vestir-se e, quando já estava pronta, olhou para ela... Ah! Como estava linda no seu vestido de noiva, branco, simples, comprido sem cauda, apenas com uma rendinha nos ombros, um decote largo, a mostrar o coração feliz, o cabelo solto, macio, caindo em cascata pelos ombros, mais parecia um anjo, vestido de noiva.

Maria tinha desenhado esse vestido pensando na ingenuidade de Joana. Combinou tudo, desde o branco, à renda, ao véu, tudo tinha que combinar com Joana, que era linda, ingénua, pura, prima, e a sua melhor amiga. Não se conteve e abraçou-a forte e, encostando sua boca ao ouvido de Joana, disse-lhe baixinho:

- Vais ser feliz!

A casa, de rés-do-chão e primeiro andar, era toda em pedra. No rés-do-chão, tinha uma sala, a cozinha, um anexo, uma casa de banho e um lugar para arrumações, que também servia de local para se passar a ferro, rodeada por um quintal empedrado ladeado de árvores.

No primeiro andar, ficavam os quartos e outra casa de banho, com janelas dum lado e doutro, e, por uma das janelas, subia uma trepadeira que caprichosa caía, depois pelo tecto que cobria o anexo.

Uma trepadeira que punha o sol a esconder-se cheiinho de vergonha, tal era a sua beleza, com as suas folhas verdes, como se o frio e a neve não passassem por ali. Na fachada da casa, umas escadas davam acesso ao quintal da frente, onde as flores sorriam a quem passasse e para elas olhasse.

Dessa casa e por essas escadas, desceu Joana rumo à felicidade, imperiosa como se fosse uma rainha, mas sempre sorridente. Entrou no carro do irmão e seguiu para a Igreja, onde já Eduardo, o noivo, a esperava, garboso no seu fato preto, mas impaciente, com o rosto contraído pelos nervos.

A música nupcial dentro e fora da Igreja. Era um hino moderno, de amor e de paz. Eduardo olhou-a e os músculos contraídos deram lugar a um sorriso feliz, a sua Joana já estava ali, já caminhava ao seu encontro, sempre sorridente, como se quisesse agarrar o mundo com esse sorriso.

Joana, enquanto caminhava, ia virando a sua cabeça e reparou que a Igreja estava como ela tinha escolhido. Não tinha rosas, pois foram substituídas por flores silvestres, lindas, de vários tons que davam à pequenina igreja da aldeia um ar de campo alegre.

Com a sua música, diferente também, escolhida por ela, pois não queria uma marcha nupcial, queria um hino de amor e era esse hino que estava tocando nesse momento, entoando alto e fazendo as paredes da igreja vibrar, parecendo que as flores dançavam ao seu som.

A cor de cada vestido das suas damas de honor condizia com o tom da flor que elas transportavam nas mãos e o ramo de Joana continha todos esses tons, numa harmonia doce que fazia contraste com o branco do seu vestido e o moreno da sua pele.

Tudo estava lindo, como linda foi a cerimónia, como lindas foram as lágrimas de felicidade de Joana e como lindo foi o beijo que o Eduardo lhe deu, que também fugiu à regra, pois, em vez de seus lábios beijar após dizerem o sim, beijou-lhe o rosto, erguendo depois a cabeça e completando seu carinho, com um beijo na testa.

Chegou a noite, a cerimonia já se tinha realizado, a festa estava no auge e Maria de mansinho, saiu para a rua. A neve caía e os seus flocos roçavam-lhe o rosto enquanto caminhava. Parou estática, com os pensamentos bem longe, no infinito, no desconhecido.

Seus pensamentos estavam junto a um rosto moreno de cabelos encaracolados.

Os pensamentos de Maria estavam junto do Pedro.

- Onde estás, Pedro? - Gritou bem alto, afastada da multidão, longe do burburinho da festa.

- Porque me afastaram de ti? Porque não vejo os teus olhos? Onde, meu Deus? Onde estás?

E suas lágrimas começaram a fundirem-se com os flocos de neve, pareciam estalactites, querendo-se partir, tal era a dor de seus sentimentos. Fechou os olhos e escutou o vento...

- Mariaaaaaaaa, Mariaaaaa... - pareceu-lhe ouvir chamar.

- Que voz é esta? Iria jurar que ouvi meu nome, mas não, ninguém está aqui, estou só, ninguém me iria chamar. - Maria sorriu e continuou a andar.

- Mariaaaaaaaa, Mariaaaaa. - Ouviu-se novamente, o som mais perto e Maria pensou estar a enlouquecer.

No mesmo instante, em Peniche, a muitos quilómetros dali, Pedro estava junto ao mar, gritando bem alto o nome da Maria. Ele havia sentido também, durante esses anos, a sua falta.

Queria-a ali, junto a ele, porque nunca a esqueceu. Todos estes anos só tiveram um sonho; ter um dia Maria nos seus braços e, enquanto um chorava junto à neve, outro secava as suas lágrimas junto ao mar.

- Tenho que sair daqui, tenho que ir viver junto ao mar - Pensava Maria. - Vou-me embora daqui - Gritou bem alto, enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto.

Dirigiu-se para casa, pensando em viver outra vida; arranjar outro emprego e sair dali.

- A Minha tia vai aceitar! E com esses pensamentos

adormeceu...

PARTE II

Dia vinte e cinco de Dezembro. Maria, depois de umas horas de sono turbulento, acordou novamente cedo. Era dia de Natal. Levantou-se e, enquanto se vestia, surgiram lembranças do passado; os seus sonhos de menina; os carinhos da sua mãe; o infinito do mar e o olhar do Pedro e, nesse momento, decidiu:

- Vou-me embora daqui e vai ser hoje! Quero ver novos horizontes, quero sentir o mar, quero viver outra vida, esquecer a Maria sonhadora. - Foi até à cozinha, onde a tia Sofia estava a preparar o pequeno-almoço.

- Bom dia tia - disse Maria, com um sorriso que já não era habitual ver-se nela.

- Mau, mau, que se passa menina?

- Tia, precisamos de falar.

- Mau, mau, Maria, quando queres falar comigo é sinal que os teus sonhos estão voando novamente. Não, não te quero escutar.

- Tia, escuta-me por favor, ouve-me. Minha prima Joaninha casou-se. Sabes que ela era a minha melhor amiga, a minha companheira, a minha confidente. Ela ensinou-me a sorrir novamente, mas tia... ela não me soube ensinar uma coisa.

- O quê, filha? O que Joaninha não te soube ensinar? - Indagou com curiosidade a tia.

- Não me soube ensinar a esquecer os meus ideais, os meus sonhos Ela não me ensinou a não precisar do mar, ela não sabe que eu preciso dele, de o ver, de o sentir, de lhe falar. Ela não me ensinou a esquecer quem tanto amei e a quem tanto amo.

-Por favor minha tia, liberta-me deste pesadelo, deixa-me voar, deixa-me sair por uns tempos e se não me encontrar, eu volto para junto de ti e dos meus primos e voltarei para esta aldeia e então deixarei de sonhar. Mas deixa-me correr atrás dos meus sonhos, deixa-me vive-los por favor...

No rosto de Maria, nas lágrimas que lhe corriam rosto abaixo, a tia viu o seu desespero.

- Sim, Maria, quem sou eu para te prender nesta gaiola dourada? Quem sou eu para impedir de procurares os teus sonhos? Estarão no mar? No deserto? Numa duna? Não sei, Maria!... Mas vai sim filha, com um pedido apenas. - E o seu rosto transformou-se...

- Diz tia, eu atenderei o teu pedido.

Dizendo isso, abraçou-a muito forte e nesse momento sentiu-a como sua própria mãe. Nesse momento viu que ela a amou como se sua filha fosse, mas Maria, dentro do seu egoísmo, nada viu, nada sentiu, porque vivia presa a um passado, esse passado que a chamava.

- Só quero que vás depois do ano novo, fazes-me isso? Passas esse dia connosco?

- Sim, esse dia será teu, minha tia, esse dia, dedico a ti, apenas a ti e a mais ninguém. Nesse dia eu não sonharei com nada, porque esse dia será o meu último dia de sonho. A partir desse dia, eu irei viver a minha realidade, aquela que eu anseio viver.

Com estas palavras acabaram o pequeno-almoço e foram ambas tratar dos seus afazeres.

Volta e meia, Maria sentia um olhar cúmplice sobre ela e quando olhava, via o olhar da sua tia e aí sorria, porque sabia que a tia estava com ela e sabia porque sorria; era um sorriso de esperança, um sorriso de quem quer alcançar o seu mundo em pouco segundos.

Chegara por fim o dia esperado por Maria. Era o terceiro dia do ano de mil novecentos e noventa e nove, dia da sua partida. Juntou a sua família à hora do almoço e comunicou aos restantes membros a sua decisão de partir.

Aí sentiu olhares de revolta, olhares de repreensão, mas também sentiu um olhar meigo sobre ela, o de sua tia. Ela sabia o porquê da sua partida, embora todo o resto da família o desconhecesse, incluindo Joana a quem nada contara. Ela, na sua felicidade, não iria compreender os seus desejos, os seus anseios, pelo que preferiu esconder do resto da família os motivos da sua partida.

- São duas horas da tarde, Maria. Avisou a tia.

- Sim tia, estou acabar de arrumar umas coisas. Levas-me ao comboio? - Um sorriso...

- Claro, como ficaria a saber se partias, se não te visse entrar nele? Ah, Maria para onde vais? - Mais um sorriso, um sorriso malicioso, como se soubesse muito e muito quisesse ocultar...

- Onde vou? Boa pergunta tia, vou por aí; onde houver um mar eu paro e... - Abraçou a tia e ao abraçá-la forte chorou amargamente, porque tinha ganho uma mãe e agora ia abandoná-la, como a sua, tragicamente, a tinha abandonado há dezassete anos atrás.

- Tenho que ser forte tia, ajuda-me...

- Sim filha, eu ajudo-te, vais ser forte, porque sabes se algo correr mal eu estou aqui, nesta casinha humilde à tua espera.

Com as lágrimas nos olhos e um aperto no peito, partiu com a esperança no coração...

O barulho do comboio misturou-se com o barulho dos seus pensamentos; com as ideias da sua alma inquieta.

Decidiu parar na sua terra natal. E enquanto pensava...

- Tenho que fazer isso, é por aí que vou começar, aí verei se as minhas esperanças serão infrutíferas ou não.

Dirigiu-se para o centro da aldeia, em direcção à loja onde outrora fazia compras e sonhava.

- Bom dia senhora - Disse Maria com um sorriso nos lábios e os olhos a brilhar.

- Bom dia menina - Respondeu a idosa que estava sentada num banco do jardim.

- Em tempos não houve ali naquela esquina uma lojinha?

- Sim menina, houve, mas já há anos que fechou e o rapaz que aqui estava à frente dela partiu para o litoral, sabe menina? - Diz a velhinha sorrindo.

- Ele era um sonhador, isto não era vida para aquele rapaz. Ele queria voos mais altos e voou - Dizendo isso, o seu sorriso alargou-se.

Maria sentiu um choque. O seu coração ficou pequenino, as suas esperanças estavam-se esfumando e não conseguiu conter uma lágrima teimosa, que apareceu ao canto de seus olhos.

Tentou disfarçar, mas a velhinha olhou para ela e com as suas mãos, já rugosas, secou-a e perguntou-lhe - Conhecia-o?

- Não, não o conhecia, emocionei-me apenas com as suas palavras.

Um sorriso do tipo malandro surgiu no rosto da idosa... como dizendo que se apercebeu que Maria mentia.

- Sabe menina, o meu marido há dias contou-me que esse rapaz está bem na vida, vive junto ao mar e tem uma vida que não tinha aqui, voou, mas voou alto.

Dizendo isso a velhinha sorriu novamente, um sorriso doce, como se ficasse feliz por transmitir aquela mensagem, porque ela sabia que lhe tinha dito algo de precioso. Mas a sua sabedoria fê-la ser discreta.

- Obrigada senhora. - Agradeceu Maria, com os olhos agora com um doce brilho de alegria.

- Precisa de alguma coisa, menina?

- Não, obrigada, passei por aqui e lembrei-me dessa loja. Obrigada por perder estes minutos comigo.

Apertou a sua mão e sorriu. Como que compreendendo o seu agradecimento, a senhora velhinha, sorriu também.

Maria, seguiu a sua viagem, sem destino, ou será que não tinha um destino? Sim, claro que tinha um destino sonhado, para quê enganar-se. O seu destino chamava-se felicidade, mar ou apenas ilusão!?

Ela não sabia, ainda não o tinha encontrado. Comprou um bilhete para a zona de Peniche e apanhou o respectivo comboio.

Tinha lido num jornal que, em Peniche, havia uma vida de mar bastante agitada, que todos os amantes do mar iam lá parar. E porque não ela? Ao pensar nisso sorriu.

A viagem estava a ser lenta, mas Maria nem se apercebeu dessa lentidão, absorvida que estava a observar a paisagem, os caminhos vazios do verde habitual, porque o Inverno rigoroso e a geada tinham queimado tudo quanto era verde...

Maria abriu a janela. O gelo que se fazia sentir lá fora fê-la sorrir, pois lembrou-se do véu da sua prima no dia do casamento, das fotos que tiraram no meio da neve, da alegria da sua prima a correr na neve, como se de uma garota se tratasse e não duma noiva e, entre uns pensamentos tristes e outros felizes, ela ia alternando a sua visão entre uma paisagem com restos do verde e outra seca e quase sem vida, quando, finalmente, chegou.

O seu primeiro pensamento, assim que saiu do comboio, foi:

- Tenho que ver o mar, tenho que sentir o seu cheiro, tenho que lhe falar, contar-lhe como tem sido a minha vida estes anos todos, tenho que lhe pedir conselhos.

Ele vai-me ouvir, cada onda sua, assim que se aproximar de mim vai-me aconselhar, vai-me dizer o que devo fazer da minha vida, vai-me dizer onde está Pedro, vai levar o meu perfume até ele e vai-lhe transmitir que eu estou aqui em Peniche junto ao mar, como ele está, só que não sei em que terra do litoral, mas numa está de certeza e ele vai escutar essa onda.

Mas... Uma lágrima rebelde aflorou aos seus olhos e desceu pelo seu rosto. Maria limpou-a e seguiu até à praia. Os seus passos eram lentos; ela queria andar rápido para mais cedo ver o mar, mas as suas pernas não correspondiam, a sua dor estava voltando novamente, as saudades estavam cravadas dentro de si, fazendo-a sentir-se só, desamparada e, enquanto andava, as lágrimas corriam pelo seu rosto abaixo e Maria, sussurrando, ia dizendo...

- Não sejas parva Maria, tu não vais voltar a ver o Pedro. Podes ir fazer esse pedido ao mar, podes até suplicar, mas ele não te vai ouvir.

Recusava-se a ouvir essa voz interior e seguiu em direcção à praia. Parou, olhou, nada viu, nada sentiu, estava paralisada, não conseguia acreditar que ao fim desses anos todos, ela estava junto ao mar. Pensou que estava sonhando e beliscou-se.

Ao sentir o beliscão, abriu os olhos e aí sim ela viu a imensidão do mar. Ele estava ali! Olhou o horizonte e viu as ondas que vinham em correria, umas atrás das outras, para junto de si. Tirou os sapatos, molhou os pés e sentiu como se tivesse sido abençoada por algo divino.

Voltou a fechar os olhos para o sentir, para o cheirar, para o ouvir e assim se manteve durante alguns minutos, como que extasiada...

Sentou-se na areia e falou com o mar. Fez-lhe o seu pedido e ele, como que a compreendendo, fazia barulho com as suas ondas que, ao chegarem a seus pés, se desfaziam como uma carícia e a espuma em que elas se transformavam, fizeram Maria sonhar.

Sonhou que era uma sereia que ia de volta ao mar nessa onda e que, lá bem no fundo, iria encontrar o seu príncipe dos mares e esse príncipe, para não a deixar sozinha, se transformava num peixe para a acompanhar.

E os seus sonhos mergulharam nesse mar profundo.

Foi nadando, nadando e olhando dum lado para outro, até que qualquer coisa lhe toca. Sente medo, mas... domina-se. Olha e vê aquele peixinho lindo que a acariciava com as suas barbatanas, como que dizendo:

- Amor, sou eu, o teu Pedro, não estás só, eu estou aqui, aliviando os teus pensamentos, a tua alma. Vem... vem comigo, mergulha neste mar imenso que é o meu mundo.

- Vem... vou mostrar-te as algas que falam, os recifes que choram de solidão, os meus semelhantes que festejam a passagem da tempestade. - Dizia o peixinho enquanto nadava.

- Olha... liberta-te e deixa-te levar por mim. Mergulha cada vez mais fundo.

- Olha, vês aquele polvo? Ele chama-te, ele dá-te as boas vindas, deixa-te ir, não tenhas receio, vai até junto dele...No seu sonho, ela escuta a voz e reconhece a voz do Pedro e deixa-se ir com um sorriso. Uma paz enorme apoderou dela.

Aproximou-se do polvo, que a agarrou com os seus tentáculos, como que protegendo-a do seu próprio medo. O peixe-aranha aproxima-se e estende-lhe seu corpo e um sem número de peixes aproximam-se dela, sorriem e embalam-na com os seus cânticos.

Vestem-na com um manto azul celeste, com uma grande cauda vermelha como o fogo, contrastando com o azul/cinzento do mar e rodopiaram-na. As raias começaram a cantar, o som da música foi aumentando e o seu cabelo foi coberto com algas marinhas, lindas, caindo em cascatas ondulantes, com a estrela-do-mar a fazer de coroa.

Ela era uma sereia princesa, onde os seus súbditos eram os habitantes do mar; onde o carinho deles era a sua música, as barbatanas deles o manto, as ondas revoltas a carruagem e...

Foi-se, deixando levar por aquela linda e profunda ilusão, a ilusão que estava junto a Pedro e aos seus amigos e que a paz, finalmente, tinha voltado ao seu espírito, uma paz que a encantava.

Sentiu uma carícia, no seu ombro. Inclinou a sua cabeça para sentir essa mão, que julgava ser a do Pedro e acordou, com uma voz doce, protectora, que a aconselhava:

- Acorde menina. O mar está bravo e daqui a pouco a maré vai encher. Tem que sair daqui!

Ela olhou para o homem que lhe tocara e sorriu, dizendo:

- Adormeci, nem dei pelas horas passarem, obrigada por me acordar.

Dizendo isso, levantou-se. Sorriu mais uma vez para o homem e despediu-se. Agarrando na sua mochila, saiu junto do mar, sentindo-se calma, com uma paz interior e um apetite que há muito não sentia, com o estômago reclamando dos maus-tratos dos últimos dias.

Entrou num restaurante virado para o mar, sentou-se à mesa, pegou na lista, escolheu o que queria e, enquanto esperava pela comida, deixou o seu olhar percorrer a sala.

Havia ali muita gente, uns com a pele queimada pelo mar, outros de fato e gravata. Desviou a vista, olhou o mar e voltou a sentir a mesma paz, que sentira à beira-mar. Lembrou-se do seu sonho e sorriu, mas entretanto o seu olhar parou num cartaz onde dizia: Curso de mergulhador.

- E se eu fosse tirar esse curso? Pensou.

- Estás doida Maria, deixa-te disso - Dizia-lhe a voz do seu consciente.

Uma onda de rebeldia dentro dela a perturbou e, se bem o pensou, melhor o fez, porque após acabar de almoçar, pegou na mochila e seguiu para perto do cartaz, para melhor o ler.

Leu-o, tirou a morada e seguiu a caminho do cais, como se já o conhecesse, pois algo a impelia para lá, algo que não sabia explicar, a empurrava para esse lugar.

PARTE III

Chegou ao local onde administravam tal curso, a Academia do Mergulho e a primeira coisa que viu foi outro cartaz a convidar ao curso de mergulho.

Entrou e bateu à porta duma sala da Academia e uma voz rouca, vinda de dentro, mandou-a entrar, e...

- Boa tarde - Diz Maria, timidamente.

-Boa tarde, que deseja? Alguma informação? - Perguntou o homem colocado por trás da pequena secretária em pinho, recheada de papelada.

Sobre a mesma, um troféu em forma de mergulhador fazia de pisa-papéis e, num extremo da secretária, um placa de identificação, COSTA, em letras bem grandes.

- Sim, li um cartaz sobre o curso de mergulhador e gostaria de saber se esse curso também é para mulheres?

- Claro, para todo o mundo dos 18 aos 40 anos. Que idade tem a menina? Dizendo isso o seu olhar percorreu o corpo da Maria de cima abaixo e Maria corou ligeiramente.

Nesse momento quis desistir de tudo, mas não, não iria ser um olhar que a ia fazer desistir dos seus sonhos. O sonho de mergulhar nessas águas límpidas e profundas. Reagiu e respondeu-lhe com ar reprovador:

- Trinta e um anos... Quero inscrever-me, o que é preciso?

O homem informou-a do que era preciso, explicou tudo e enquanto ele preenchia a papelada para a sua inscrição na Academia, Maria ia percorrendo a sala com o olhar e reparou que a mesma tinha uma decoração discreta.

A simplicidade estava visível ali, nela tudo continha dizeres e fotografias alusivas ao mundo do mar, ao mundo do mergulho. As paredes brancas como se tivessem sido acabadas de pintar, com fotos de cada turma de mergulhadores que por ali passaram.

Ao centro por cima da secretária estava uma fotografia do fundador da Academia, um homem forte, com grandes bigodes, figura de um autêntico lobo dos mares.

As janelas grandes, abertas para trás, onde a visão era maravilhosa, pois via-se o mar ali tão perto, como se as ondas quisessem entrar através delas.

Tão absorta estava a observar a sala, que saltou ligeiramente ao ouvir a voz áspera e um pouco seca do funcionário, ao dizer-lhe:

- Cada dia há um treinador, o professor nunca é o mesmo e, para não haver dúvidas, é expressamente proibido as alunas envolverem-se com os professores.

- Muito bem. - Respondeu ela. E pensou. - E os professores com as alunas? - O meu objectivo não é esse e, já agora, saberá dizer-me se haverá por aqui um quarto para alugar?

- Olhe, veio mesmo na hora certa. Nós alugamos quartos para alguns alunos e ainda temos uma vaga. Está interessada?

- Certamente que sim, cheguei agora do interior e não tenho para onde ir.

- Do interior para aqui?!

- Porque não?

- Desculpe menina, é que o seu aspecto nada diz que vem do interior, parece antes vinda da capital.

Maria sorriu e disse-lhe...

- Quem vê caras não vê corações - Dizendo isso, pegou na sua mochila e seguiu o homem que ia indicar-lhe o caminho.

Chegou ao quarto, entrou e, com olhar, percorreu-o todo. Gostou do que viu, um quarto limpo, arejado, com cortinas aos xadrez, uma cama de corpo e meio, uma cómoda e uma guarda fatos, tudo em pinho, a condizer com o chão que também era em madeira de pinho, bem como o varão dos cortinados.

Estava tudo a combinar, dentro da simplicidade, gostou, gostou muito e decidiu alugar o quarto.

Despediu-se do funcionário, fechou a porta, deu um salto para cima da cama e suspirou e, ao suspirar sorriu. Fechou os olhos e os sonhos voltaram novamente à sua mente. Um rosto, que a fixava, aflorou aos seus olhos e, nesse rosto, mais uma vez via a figura de Pedro.

- Por onde andas? Que é feito de ti? Porque nos separou a vida?! - Gritou uma voz dorida dentro de si, como se fosse um animal que acabasse de ser ferido. Mas a sua ferida era grande, tão grande que doía, tão forte, que fazia o seu choro tornar-se compulsivo.

Na sua amargura, chorou, chorou muito, até que, cansada, adormeceu vestida e calçada, só acordando no dia seguinte, mais fresca, sentindo-se livre como um pássaro. Estava radiante e nada a afectava naquele momento. Via o mundo cor-de-rosa.

Iria realizar um dos seus sonhos, ela ia mergulhar nesse mar, ver os seus peixes, passear entre as algas e recifes, conhecer todas as maravilhas das profundezas do mar.

Levantou-se, deu um duche, preparou-se e lá foi tomar o pequeno-almoço, para depois seguir para a escola de mergulho, onde as suas aulas iriam começar dali a uma hora.

Chegou lá e viu muita gente jovem. Entre eles encontravam-se alunos e alguns professores.

Seu olhar percorreu todos os presentes, mas em nenhum se fixou. Só que, alguém entre eles a viu e a reconheceu. Alguém que paralisou ao olhá-la, como se ela dum fantasma se tratasse.

Pedro estava lá, entre aqueles jovens, vivo, alegre, mas, mais uma vez ele nada fez ou disse. Mais uma vez a sua timidez dele se apoderou, paralisando-o na presença da Maria, mas ela seguiu em frente e misturou-se com os restantes alunos para o reconhecimento geral.

O instrutor, conduzi-os à sala de aulas, fez a chamada e foi conhecendo um a um, entre rapazes e raparigas e cada vez que os chamava, para os pôr à vontade, ia dizendo uma piada e aos poucos foram aparecendo sorrisos em todos os rostos. Os alunos estavam a integrar-se bem e Maria, tal como os restantes, estava feliz por estar a participar nesse curso.

Olhava dum lado para outro e ia observando. O seu olhar observador estava gostando do que via. Acabaram-se as apresentações e o mestre, sorrindo, levantou-se da cadeira e disse:

- Chegou a hora de se familiarizarem com a academia, sigam-me. - E lá foram todos atrás dele.

Começaram pela sala onde Maria tinha feito a inscrição e, alguém com sentido de humor, um rapaz alto, moreno, disse...

- Esta já nós conhecemos, não podíamos estar no curso, se não passássemos por aqui. - O riso foi geral. O mestre olhou para ele dizendo a sorrir...

- Está visto que temos aqui um rebelde. - Bateu-lhe nas costas. - Veremos se lá em baixo manténs esse sentido de humor. - Mais uma vez a risada foi geral, estava visto que aquele rapaz, chamado Alfredo, iria ser o bobo da aula.

Seguiram depois para uma sala de aulas, onde havia várias carteiras e, encostada a uma parede, encontrava-se a secretária do professor, estando a seu lado o quadro onde ele iria passar os apontamentos.

A sala era pintada de bege e vários quadros alusivos ao mergulho encontravam-se espalhados pelas paredes.

Deixaram essa sala e foram percorrendo mais quatro salas, todas decoradas da mesma maneira, mas cada uma pintada de cor diferente.

- Professor, porque é que cada sala de aula tem uma cor diferente? - Indagou uma das alunas, de nome Fernanda.

- Boa Pergunta menina, antecipaste-te porque eu já ia explicar o porquê das cores. - E foi dizendo:

- Cada sala corresponde a um grau de ensino. Cada vez que ultrapassarem esse grau, mudarão de sala e as salas serão conhecidas pelas cores e não por números, como habitualmente. Iremos começar pela Bege, seguida da verde, cinza e finalmente a sala azul, a cor do mar, se lá chegarem serão futuros mergulhadores.

- Mas continuemos. - Disse ele seguindo para a sala dos vestiários, onde explicou:

- Na ala direita, o vestiário e chuveiros femininos, na ala esquerda, vestiário e chuveiros masculinos. - Com um sorriso maroto, perguntou: - Perceberam bem? Agora não troquem.

- Professor - Disse Alfredo. - Eu sou míope. - Dizendo isso, um sorriso malandro apareceu no seu rosto.

- Ah, sim Alfredo? - Ele já sabia o seu nome. - Então lamentamos todos, mas não vamos poder manter-te na escola. Não é verdade meninos? Uma das regras é não ser míope. - O riso foi geral e Alfredo replicou...

- Não professor, eu vejo bem, estava brincando.

Mais uma vez o mestre, piscando o olho para o resto da turma, perguntou:

- Acreditam?

- Nãoooooo! - As vozes entoaram nos vestiários e, sorrindo, lá seguiram no reconhecimento da academia.

Seguiram para a sala de reuniões, passando depois para o refeitório, tendo o mestre informado que ali poderiam fazer as suas refeições. E, em menos de uma hora, a academia estava toda vista.

A partir dali, o tempo faria com que o conhecimento da mesma fosse mais profundo.

Oito da manhã do dia seguinte. Pedro saiu de casa e foi passear até à praia. Seus pensamentos estavam turvos e nada melhor que ir olhar o mar para descontrair; para melhor raciocinar. E ali ficou parado a olhar o mar, olhando os pescadores que ali passavam os seus dias pescando.

Tão absorvido estava nos seus pensamentos que nem deu pela chegada do seu colega e amigo.

- Bom dia Pedro. Logo de manhã por aqui? - Sorriu.

- Bom dia Sérgio. Estava entretido a observar os pescadores, que nem dei pela tua chegada.

- Que se passa? Estás com umas olheiras, sobrancelhas arqueadas, mau! Eu conheço-te bem Pedro, que se passa? - Insistiu.

- Nada. Sério, não se passa nada!

- Nada? Sabes há quantos anos eu te conheço? Sabes há quantos anos nós trabalhamos juntos? Sabes que entre nós nunca houve segredos! Conta lá rapaz, que se passa. - Deu-lhe uma palmada nas costas e sorriu.

- Ok, ok, está bem! Sabes, esta noite não preguei olho. Apenas isso e, como já não podia estar deitado, vim até aqui para ver o mar.

- Não dormiste? Tu, o homem da nossa praça que mais dorme, não dormiste? Que se passa? Desabafa, homem.

- Lembras-te de eu te ter falado da minha aldeia?

- Sim, lembro-me, porquê?

- Lembraste de eu te ter contado que, quando ainda era garoto, aí com os meus dezasseis anos, me ter apaixonado por uma rapariga? E, por ela, eu fiquei solteiro durante todos estes anos!

- Sim, recordo-me perfeitamente, não fosse ela a mulher a quem tu dedicas esses poemas diários. Mas que aconteceu com ela?

- Ela está aqui, bem perto de nós.

- Aqui? - Interrogou, admirado, Sérgio.

- Sim. Ela é uma das alunas que se inscreveram ontem no curso de mergulho. Lembras-te do Costa dizer que chegou uma rapariga muito bonita do interior?

- Se me lembro, todos nós estamos desejosos de a ver.

- Pois essa rapariga do interior é a Maria, a mulher que amei todos estes anos. E eu sem conseguir coragem para falar-lhe, sem a poder tocar.

- Porque não? Que te disse ela quando te viu?

- Nada, ela não sabe que estou aqui, nem deve imaginar que eu vou ser um dos professores dela. Maria já nem se deve lembrar da minha existência, já lá vão quase dezassete anos, qual a mulher que se lembra do magricelas que estava atrás do balcão duma mercearia?

- Calma Pedro, pode não ser ela. Como bem disseste, passaram-se muitos anos e as pessoas mudam de feições, calma.

- É ela, Sérgio. Eu reconhecê-la-ia entre um milhão.

- Ok! Se é, vai falar com ela, diz-lhe quem és!

- Não, não consigo. Ela não sabe que a amei, que ainda a amo, ela não pode saber. A esta hora já deve ter marido e filhos.

Mantiveram-se a conversar por mais de uma hora, até que chegou a hora do curso. Sérgio, curioso não deixou de comparecer à chamada.

Ele queria conhecer a mulher que fez com que o seu amigo, todos estes anos se afastasse de todas as outras. Ele queria falhar-lhe, ouvir-lhe a voz, saber o que de especial tinha essa mulher, porque para ser amada como era por Pedro, só poderia ser uma mulher especial. E, se bem o pensou, melhor o fez.

- Bom dia menina, apresento-me, Sérgio, um dos seus futuros professores de mergulho.

Um sorriso envergonhado surgiu nos lábios de Maria e, estendendo a sua mão, timidamente disse:

- Bom dia, sou a Maria.

- Tenho ideia de já a ter visto, mas não sei onde!

- Não me parece. Sou nova aqui, vim do interior, cheguei ontem, vi que estavam a dar este curso e como o mar é a minha paixão, resolvi entrar nele.

- Com licença, as aulas vão começar. Muito prazer Maria, se for preciso alguma coisa, não tenha receio de dizer. - Sorrindo, apertou-lhe a mão.

PARTE IV

Cada um seguiu o seu caminho e Sérgio não resistiu em ir ter com o Pedro. Entrou no seu gabinete, como um furacão, gritando:

- Pedro, mostra-me os teus poemas.

- Estás doido? Que se passa? Porquê essa gritaria?

- Eu conheci-a, eu conheci a tua Maria, eu fui apresentar-me a ela.

- Conheceste a Maria? Conta como foi isso? Como está ela? Está casada? Tem filhos? - Ao dizer isso as suas mãos tremiam, a sua voz trémula mostrava bem o seu estado de ansiedade.

- Calma rapaz. - Disse Sérgio a sorrir. - Eu só me apresentei, ela pouco falou comigo, ela estava tímida, mas Pedro, digo-te uma coisa, só uma mulher daquelas te faria estar estes anos todos sozinho. - Ao dizer isso um sorriso malicioso apareceu ao canto de sua boca.

- Diz Sérgio, de que falaram? Ela está casada?

- Não há aliança naquele dedinho delicado, isso posso-te eu garantir, mas ela só me disse o nome, Maria e que veio do interior. Mas ela é bonita a valer, delicada, suave, viste-a bem ontem?

- Como ela é alta, aqueles olhos azuis a fazerem contraste com aquela longa cabeleira preta, aquele sorriso, sempre nos seus olhos e lábios, morena, vestida com descrição, mas com gosto. Pedro, tens a certeza que ela veio do interior? Duma aldeia? Ela é a tua mulher Pedro, eu já não duvido mais duma coisa dessas. - Dizendo isso, pegou nos poemas que o Pedro lhe estendia e começou a lê-los.

Eles falavam do seu grande amor por Maria. Neles, descrevia como tinham sido as suas vidas de adolescentes. Descrevia o sofrimento pelo qual passou ao longo destes anos e Sérgio estava maravilhado com tudo aquilo.

Ele amava a sua esposa, mas não daquela maneira, ele jamais tinha visto amor com a grandeza daquele que Pedro nutria por Maria e ali ficou lendo, sem nada dizer, sem notar que Pedro se tinha retirado.

- Pedro. - Chamou ele sem levantar a cabeça e, como não ouviu resposta, ergueu os seus olhos e viu que estava só.

Olhou o relógio e verificou que esteve ali estático durante uma hora a ler os poemas do amigo, essas maravilhas do amor e, como se estivesse falando para o amigo, disse:

- Olha este, vê este, neste dia não devias estar muito inspirado. - Começou a lê-lo em voz alta.

Cem anos na terra eu viva
Outros tantos cem viveria

Á procura de ti minha diva

Sem desistir um só dia


Em cada dia que finda
Mata-me a minha saudade

E a tristeza é bem vinda

Longe da tua liberdade

Mais um dia está a nascer

Renasce também a esperança

De hoje te encontrar e te ter

Pois só tenho tua lembrança

Meu coração já não ama

Nem outro amor eu vou querer

Maria tu és toda a minha vida

Sem ti eu não sei mais viver!

Entretanto, como ninguém estava ali para o ouvir ler, porque Pedro tinha saído, ele estava transtornado, não conseguia estar quieto.

Tinha que ver a Maria, nem que fosse de longe, ele tinha que saber como ela estava.

Sérgio saiu da sala e foi a casa falar com a sua esposa. Levava consigo alguns poemas do Pedro, para partilhar com ela a sua emoção, a emoção de ter um amigo assim, com essa capacidade de amar.

Ao chegar a casa chamou Luísa, a sua mulher, e começou a contar-lhe a história do seu amigo Pedro e de Maria.

- Será que ela ainda o ama também? - Perguntou Luísa.

- Não sei. - Respondeu Sérgio. - Ele nunca me falou do amor dela, mas só pode, eles têm demasiadas coisas em comum, o celibato, o amor ao mar. Eles amam-se Luísa, eu não me engano.

- Dizendo isso, agarrou nas mãos da esposa apertando-as como que a pedir-lhe ajuda e, como ela o conhecia tão bem, sentiu aquele aperto de mão e, sorrindo, disse-lhe:

- Queres ajudá-los a encontrarem-se?

- Sim. - Respondeu ele. - Esse casmurro não vai falar com ela, não lhe vai mostrar o que sente por ela. A sua timidez não o deixa fazer isso, temos que fazer algo por eles.

- Deixa por minha conta. Amanhã já vou à escola e, como se fosse por acaso, eu falo com ela. - Dizendo isso, beijou o nariz ao marido, e rematou:

- Agora vai, ainda dão pela tua falta lá na academia.

Sérgio, beliscando o rosto da sua esposa, saiu sorrindo, gritando:

- És um amor.

Assim que Luísa se encontrou sozinha, ficou pensativa e, diante dos seus olhos, passou um filme romântico. Ela já via o Pedro e a Maria saírem da Igreja, já casados. Luísa já via os seus filhotes brincarem com os filhotes dos seus amigos Pedro e Maria e a sua cabeça não mais descansou. Tinha que fazer algo por aqueles dois.

- Mas espera Luísa. - Diz ela para si mesma. - Sabes se Maria ama o Pedro?

Ama sim, ela tem que amá-lo. - Dizia seu incorrigível coração romântico.

Ficou a pensar na melhor maneira de abordar Maria, como se fosse por acaso e, entre uma e outra artimanha que passava na sua mente, ia continuando os seus afazeres, pensando que de tarde, após o almoço, iria à escola. Ela até tinha que lá ir, pois sendo a contabilista da academia, tinha que lá ir buscar uns papéis.

Aproveitava e procurava Maria, porque não poderia passar esse dia sem a abordar e, ao pensar assim, sorriu, um sorriso maroto, como se já tivesse a certeza que sua obra iria ser realizada com êxito.

Entretanto, lá na academia, Maria continuava com as suas aulas e aos poucos ia conhecendo os colegas e estava feliz.

Todos eram agradáveis, todos tinham uma palavra meiga para ela, eles sabiam que Maria tinha chegado há dois dias do interior, porque o professor fez esse comentário na aula de apresentação e eles deduziram que ela estivesse só naquela cidade e sorriam-lhe como querendo dizer-lhe "não estas só, somos um grupo, somos como uma família".

Maria comovia-se com aqueles sorrisos de carinho e sentia-se menos só. Sentia que o mundo não era tão ruim como ela estava imaginando.

A pensar nisso, saiu da sala de aula e a caminho do refeitório ela viu que, à sua frente, de costas e na mesma direcção, seguia um homem, cuja figura lhe chamou à atenção.

Sentiu algo estranho dentro de si. Reparou na sua maneira de andar, no seu cabelo e, batendo na sua testa, comentou consigo mesma:

- Maria deixa de ser louca, vê o Pedro em tudo que se mexe. Ele estará bem longe daqui, sabe-se lá onde anda, não sonhes alto, acorda para a realidade.

- Fechou por segundos os olhos e sentiu mais uma vez essa dor dentro de si, mas reagiu e quando abriu os olhos, essa figura já não se avistava.

Maria pensou que tinha sido uma alucinação sua, só que Maria desconhecia que, no momento que fechou os olhos, essa figura olhou para trás e, vendo que era ela, escondeu-se atrás dum pilar para a ver passar sem ser notado.

Quando Maria passou perto dele, Pedro ficou paralisado.

- Como ela está linda, meus Deus. - Comentou. - Como ela se transformou nesta mulher linda. Os seus olhos, o seu andar delicado, o seu cabelo tratado com carinho, parece uma rainha e eu não posso ser o seu rei... porquê...? Porquêeeeeeeeeee...??? - Gritou para dentro de si.

- Que fiz de errado para não merecer o seu amor? Quem fui eu para merecer tamanho castigo? Porque a amo ainda? Aindaaaaaaa? Eu amo-a mais do que nunca, disso eu sei agora, tens que ser minha Maria, tens que ser o meu amor, eu tenho tanto carinho, tanto amor, para te dar. Meu Deus não me castigues mais! - Gritou ele.

Com essas palavras seguiu para o exterior da academia. Já tinha perdido o apetite, ele não poderia comer no mesmo sítio que Maria, sem lhe falar, sem os seus olhos fixar. E, na sua mente, outro poema saiu.

Pedro sentiu que estava enlouquecendo de tanto amar essa mulher e não ter coragem de lhe dizer, não ter coragem de lutar contra a sua cobardia e imaginou que ela ia ser sua nessa noite fria de Janeiro.

Do seu peito soou um grito de dor, de desejo, de paixão, de amor incontrolado. E escreveu o poema:

Maria... Tu és a lua, que carrego dentro de mim

Sonho a dormir, sonho acordado

Não paro de pensar em ti

Fecho teus olhos, para tuas pálpebras beijar

Nesta fria e longa madrugada

Com carinho, com fervor

Preparo teu corpo, para poder amar,

Com carícias, com beijos, com amor

Libertamos todo o stress

Desses anos de solidão e de dor

Te amo, te delicio

Tua loucura se liberta,

Nossos anseios se conjugam

Nossos olhos se encontram

Nossos corpos rodopiam

De paixão, de prazer

De sentidos que arrepiam

Não sabia o que se estava a passar consigo, ela que toda a vida leu poesia, nunca algo desse género lhe tinha acontecido.

- Meus Deus, que se passa comigo? Porquê esta emoção, como se eu conhecesse esse poeta, de linda alma, como se estes poemas tivessem sido dirigidos a mim?

Tão embrenhada estava na sua leitura que nem deu pela chegada de Luísa junto a si e deu um salto quando ouviu a sua voz.

- Maria que tens? Porquê esses olhos brilhantes, como se tivesses estado a chorar? - Perguntou Luísa, ficando nesse momento com a certeza que Maria amava alguém e esse alguém, só poderia ser Pedro.

- Desculpa Luísa. - Tentou disfarçar sua emoção, mas não resistiu a perguntar:

- Quem é esse poeta? Como se chama? Quem é essa mulher felizarda que é dona dum amor tão grande?

- Esse poeta é um amigo meu. Há anos que ele escreve para essa mulher. - Disse com indiferença para criar mais expectativas dentro de Maria.

- Fala-me dele Luísa. - Pediu Maria.

- Pouco há a dizer sobre o poeta, Maria. - Respondeu Luísa. - Apenas, que é um grande amigo e que ama, como poucas pessoas o sabem fazer. Por falar em amor, nunca casaste Maria?

O olhar da Maria enublou-se de tristeza e sua voz quase não se ouvia ao responder:

- Não Luísa. Na minha juventude amei um homem, a vida separou-nos, mas o amor por ele ainda vive cravado dentro de mim. Jamais o consegui esquecer, jamais quis outro homem. Ou um dia tenho-o a ele, ou não terei mais ninguém na minha vida. - Um sorriso triste se desenhou nos seus lábios, continuando:

- Por isso a minha emoção ao ler esses poemas, pareceu-me que estava a vê-lo, pareceu-me a nossa história. Mas... Loucura, não ligues, isso são ilusões dum coração já muito sofrido. - Dizendo isso levou a mão aos olhos para limpar uma lágrima.

- Minha amiga, o que eu daria para te ver feliz. - Disse Luísa, agarrando na sua mão e brincando com essa lágrima rebelde que tirou das mãos de Maria.

- Tenho que fazer algo. Já não tenho dúvidas desse amor, Maria ama o Pedro com a mesma intensidade que ele. - Disse Luísa para si mesmo.

Ainda estiveram conversando mais uma hora, até que Maria se despediu para ir começar o seu primeiro dia de aulas, como professora no Instituto.

Vinte e três e trinta. Maria acabou as aulas e sentiu-se realizada, sentia-se quase feliz. A vida estava começando a dar-lhe tudo o que tinha pedido, estava a dar-lhe as coisas desejadas de mão beijada e ela nem queria acreditar que isso se estava passando consigo.

- Tenho quatro turmas maravilhosas. Receberam-me bem no Instituto, consegui que me aceitassem e que passassem a ver em mim a amiga e não a professora. - Disse sorrindo feliz.

No dia seguinte, lá foi para a academia, estava a adorar as aulas de mergulho, os colegas eram seus amigos, sentia-se em paz a falar com eles, um contava uma anedota, outro uma piada e havia aqueles que lhe falavam meigamente, como se quisesses penetrar no seu coração, mas eles desconheciam que esse já estava preenchido, esse já não tinha espaço para mais ninguém, pois a imagem, as lembranças do Pedro o preenchiam, não deixando espaço para mais nada, para mais ninguém.

Nessa tarde enquanto falava com os seus colegas contou-lhes que tinha alugado uma casa e perguntou-lhes se a ajudavam a montar a mobília do quarto, depois dos homens a deixarem lá em casa, o que logo três se ofereceram e combinaram que ela diria algo assim que a comprasse.

Luísa, as dezassete e trinta estava à porta da Academia para ir com Maria às compras, primeiro passariam pela casa das mobílias, seguindo depois à casa dos atoalhados, porque Maria nada tinha consigo, para poder habitar a casa e ela queria ir para lá com as mínimas condições e sorte dela que para a cozinha não teria que comprar nada porque a casa já estava com esses apetrechos todos que pertenciam à cozinha.

- Boa tarda Luísa. - Disse entrando no carro dela e apontando para a barriga perguntou: - Como se porta o reguilita? - Sorrindo da expressão que tinha utilizado.

- Boa tarde Maria, estou óptima, vai ser um bebé calmo, ando a sentir-me tão bem, que me esqueço por vezes que estou grávida. - Dizendo isso acariciou sua barriga sorrindo.

Entraram em duas lojas de mobílias, olhavam para elas e nenhuma lhes dizia nada, até que ao passarem por uma loja, Maria deparou com um quarto simples, mas lindo, a cabeceira da cama forrado com um tecido verde, idêntico aos sofás e cadeiras da sala e a cómoda com pedra por cima.

- Luísa não vais acreditar, mas a mobília da sala é do género desta, nunca vi coisa tão parecida, vamos entrar.

Entraram e logo se dirigiram à colaboradora da loja a perguntarem o preço. Maria achou caro, mas os seus olhos não se desviavam da mobília.

Ela conhecia-se bem, sabia que mais nenhuma lhe iria agradar.

A colaboradora da loja vendo que Maria não tirava os olhos da mobília, disse que faziam pagamento a prestações e que ela a levasse pois via-se que era dessa, que ela gostava.

- Maria pensa bem, nos dias que estamos hoje se não comprarmos as coisas as prestações, acabaremos por levar para casa aquilo que não gostamos. - Disse-lhe Luísa que tal como a colaboradora da loja, via que Maria se tinha apaixonado por aquela mobília de quarto.

- Tens razão Luísa. Vou levá-la e aos poucos sem dar por isso eu tenho o meu quarto pago. - Falou com a colaboradora da loja e combinaram que no dia seguinte seria entregue no seu apartamento a mobília.

Saíram as duas radiantes da loja, dirigiram-se para outras lojas e quando Maria deu por si, tinha gasto muito dinheiro, mas estava feliz, ela ia ter a casinha a seu gosto.

Tudo tinha sido escolhido dentro da simplicidade, mas com gosto, tendo Luísa reparado que Maria tinha um gosto requintado e associou-a a Pedro, o seu amigo também era assim, coisas simples, mas com gosto, tudo a condizer um com outro e marota sorriu com o seu pensamento.

- Não há dúvida que foram feitos um para o outro, não me chame eu Luísa se não os conseguir juntar.

Pararam numa pastelaria e foram lanchar, estavam exaustas e com fome, aquela correria tinha-lhes aberto o apetite de tal maneira estavam felizes que lancharam bem entre risos e conversas alegres.

Maria à noite depois de chegar das aulas, deitou-se na cama sem sono, pensativa.

O seu pensamento estava fixo naqueles poemas, perguntava-se continuamente quem seria aquele poeta, que escrevia tão bem, com tanto sentimento, com tanto amor.

- Como seria bom que esse poeta fosse Pedro. Maria pára com isso, amas o Pedro ou está esquecido no teu subconsciente, dando lugar a esse poeta?

- Ao ouvir essa voz de dentro de si enervou-se, porque a realidade estava presente, ela amava Pedro, mas do seu pensamento não saíam aquelas palavras que tinha lido em casa da Luísa, estava obcecada e a pensar nisso adormeceu, mas com um sono agitado em sobressalto e sonhou com o poeta, com Pedro, uma mistura de rostos de imagens, uma mistura de sentimentos.

PARTE IX

Acordou de manhã cansada, abatida, lembrava-se do seu sonho e mais inquieta ficou ao vir-lhe à ideia toda essa noite, seu corpo parecia que ardia em febre, revoltada reclamou...

- Não posso continuar assim, Luísa tem que me dizer quem é esse poeta, não é normal uma poesia ter mexido com os meus sentidos, com os meus sentimentos dessa maneira.

Pensando nisso, levantou-se da cama dum salto numa atitude agitada e resolveu telefonar para a Academia a dizer que não se sentia bem e que nesse dia não ia às aulas... Queria-se concentrar noutra coisa, para que essas imagens fugissem da sua retina, do seu pensamento.

Resolveu passar por casa de Luísa porque precisava de falar com alguém, ir até ao mar e de seguida iriam ver o seu apartamento e levar para lá as coisas que tinha comprado na véspera.

Se bem o pensou, melhor o fez, saiu de casa, parou na pastelaria da esquina, tomou seu pequeno-almoço, telefonou para a academia e seguiu para casa de Luísa.

Tocou a campainha e Luísa apareceu-lhe à porta ainda de robe.

- Que se passa Maria? Que estás a fazer aqui a estas horas? - Indagou Luísa com o semblante preocupado.

- Tens alguma coisa de importante para fazer hoje Luísa? - Perguntou Maria com visível estado de ansiedade. - Hoje não vou às aulas, não dormi bem, não me sinto bem e preciso da tua companhia, hoje não posso estar só, entregue aos meus pensamentos, senão enlouqueço.

- Entra Maria, claro, que vou contigo onde quiseres. Até calha bem, porque Sérgio hoje foi a Lisboa com um colega e só regressa à noite e ia-me sentir sozinha. - Luísa sorrindo disse: - Bruxinha, adivinhas-te que hoje precisava de ti.

- Fazemos assim Luísa. Depois de te vestires, vamos dar uma volta ao mar, bebemos um café e vamos ao meu apartamento. Para à tarde logo faremos planos. Se hoje não podes estar só, eu também não! - Batendo na mão de Luísa, exclamou sorrindo. - Adeus solidão.

Depois de Luísa estar pronta, saíram e entraram no carro. Foram ao quarto de Maria buscar as compras da véspera e seguiram em direcção ao mar, onde estiveram uma hora e meia falando. Aí, Maria abriu o seu coração e contou toda a sua história, desde a infância, falando do Pedro, do amor que sentia e sempre sentiu por ele, até aos dias de hoje.

- Agora que sabes a minha história Luísa... diz-me por favor... É normal o que estou sentindo por esse poeta sem o conhecer? Sabendo que ele ama outra mulher? Sabendo que eu amo Pedro, que o amei a vida toda?

- Sim Maria, é normal. Tu estás sensível, os poemas falam duma história idêntica à tua. Faz sentido, tudo isso mexer contigo.

- Quem é esse poeta Luísa? Preciso de o conhecer.

- Um dia destes vais conhecê-lo, Maria. - Sorriu, acrescentando: - Ele, de momento, não está cá, um dia destes apresento-to.

Luísa não mentiu, pois Pedro tinha ido com Sérgio a Lisboa, portanto a sua consciência não a acusava de mentir.

Depois de terem recebido a bênção daquele mar sagrado, depois de terem sentido a pressão suave das ondas nos seus pés, regressaram ao carro.

Maria ficou mais aliviada por ter partilhado algo seu com Luísa, aquela sua nova amiga que apareceu na sua vida na altura que ela mais precisava duma pessoa para desabafar e para lhe fazer companhia.

Chegaram ao apartamento de Maria e Luísa reparou que era um prédio agradável e tal como Maria, pensou que tinha a particularidade de estar virado para o mar, o que, só por isso, já era agradável.

Mostrou todo o apartamento à Luísa que ficou encantada. Tudo naquela casa estava a condizer e, para completar, Maria havia escolhido a mobília do quarto do mesmo estilo e cor.

- Maria, vais sentir-te muito bem nesta casa. - Disse Luísa maravilhada com o que viu.

- Sim, já não me sinto bem naquele quarto, onde não me posso mexer, onde tenho que estar limitada apenas à minha cama. Se pudesse ter avisado os meus colegas, eles ainda teriam vindo cá hoje montar-me o quarto, uma vez que vêm cá hoje pôr a mobília e, se assim fosse, já hoje cá dormia.

- Mas podes fazer isso, Maria. Vamos telefonar para a Academia, mandas chamar um dos teus colegas e combinas para depois das aulas, porque o apartamento está limpo.

- Sim, a senhoria mandou ontem limpá-lo. Estava no contrato que a primeira limpeza era por conta do senhorio, portanto é só ter onde dormir e mudo logo.

Após terem feitos alguns planos para a mudança de Maria, saíram e foram telefonar para a Academia, mas como Luísa se lembrou do poema do Pedro, insistiu com Maria para irem almoçar a sua casa, assim aproveitava e punha o poema na mala e deixá-lo-ia no apartamento de Maria, durante a confusão das mudanças.

- Não Luísa, hoje almoçamos fora. - Replicou Maria.

- Olha Maria, eu ontem já tinha preparado a carne para o almoço de hoje e se não a fizer estraga-se e como Sérgio chega tarde e tu hoje não tens aulas à noite, arrumamos o teu quarto, após os teus colegas o terem montado, e vamos jantar fora, combinado? - Perguntou Luísa com um sorriso matreiro.

- Combinado, levas sempre a tua avante. - Disse Maria sorrindo.

Seguiram para casa de Luísa, fizeram o almoço e quando acabaram de almoçar já eram duas da tarde. Foi só o tempo de arrumar a cozinha e voltaram para o apartamento de Maria, pois os homens iriam lá entregar a mobília.

Enquanto Maria acabava de arrumar a cozinha, Luísa aproveitou e foi à gaveta do armário de onde retirou o poema do Pedro, o último que ele tinha feito para Maria.

Pegou numa rosa que estava num ramo da sala de jantar e colocou-a dentro da fita rosa que embrulhava o poema, juntando-lhe um cartãozinho, onde escreveu "Espero-te no Sábado às quinze horas na praia, junto à âncora".

Pegou num saco, guardou lá o poema e dirigiu-se à cozinha com um sorriso nos lábios, sorriso esse que Maria reparou perguntando-lhe:

- Que sorriso é esse Luísa? Pareces uma miúda apanhada em flagrante, não estás a pensar em coisa boa. - Sorriu.

- Lembrei-me do Sérgio a pensar que hoje estaria sozinha o dia todo e eu aqui no bem bom com uma óptima companhia. - Dizendo isso passou os braços pelos ombros de Maria, mudando de assunto como se esse a incomodasse.

Luísa foi a despensa, pegou em dois pacotes de leite, num frasco de compota caseira feita por ela e levou-os para a cozinha dizendo:

- Aqui estão estas coisinhas para o teu pequeno-almoço. Amanhã escusas de gastar dinheiro tomando-o fora, e a seguir passamos pela minha padaria e combinamos com a senhora para de manhã te deixar o pão à porta.

Maria olhou para a Luísa emocionada, pensando.

- Será que mereço tudo isso? Será que mereço uma amiga assim? - Deixando de pensar disse:

- Não sei como te pagar tudo o que tens feito por mim Luísa.

- Vais pagar sim Maria. - Disse Luísa sorrindo. - E bem caro, porque eu vou pedir-te que sejas a mulher mais feliz deste mundo. É o único pagamento que eu quero minha amiga e se depender de mim tu vais sê-lo, juro-te Maria. - Pronunciou esse "Maria " com a voz emocionada.

Maria olhou para a sua amiga com um olhar carregado de tristeza, mas nada replicou. Ela sabia que, se dissesse algo nesse momento, desataria a chorar e Luísa não podia emocionar-se devido ao seu estado.

Pegaram nos sacos e dirigiram-se para a rua, tendo ir tomar um café antes de seguirem para o apartamento de Maria.

Estiveram no apartamento a arrumar as coisas que Maria tinha comprado e, quando bateram as quatro horas no relógio da igreja, a campainha da porta do apartamento tocou.

Eram os homens da transportadora a deixarem lá a mobília do quarto e como estavam com pressa disseram que voltariam no dia seguinte para a montarem, tendo Maria agradecido e respondido que não era preciso, uma vez que os seus colegas, após as dezassete e trinta, iriam lá montá-la.

Acto continuo, Luísa e Maria foram à sala buscar as roupas que tinham comprado e começaram a arrumá-la na cómoda, já que era a única peça da mobília que tinha vindo montada, aproveitando, assim, para adiantar serviço.

Maria estava radiante. Nem queria acreditar que iria dormir no seu novo apartamento e, enquanto pensava nisso, tirou dum saco um bonito conjunto de lençóis, em tons rosa e cinzento, com uma renda muito discreta em cima, para pô-los na cama, assim que a mesma fosse montada.

- Maria, ainda são só dezassete horas, porque não vamos ao teu quarto e trazemos já tudo hoje? Amanhã de manhã já podes entregar a chave ao Costa. - Disse Luísa pegando no saco onde tinha o poema e seguiu para a sala disfarçadamente, aproveitando o momento em que Maria estava distraída olhando o mar através da janela do seu quarto.

- Sim, tens razão. - Respondeu Maria olhando para trás e reparando que estava só no quarto.

- Luísa onde estás? - Perguntou Maria dirigindo-se para a sala.

- Aqui Maria, na sala a separar os sacos. - Respondeu matreiramente pois já tinha escondido o poema e a rosa na gaveta do móvel da sala, rezando para que Maria não fosse lá antes dela e dos colegas saírem do apartamento.

- Vamos então? - Luísa pegou na sua mala e empurrou Maria para a entrada e foram ao quarto buscar as roupas e todos os seus pertences.

Como já tinha poucas coisas, porque parte delas já as havia levado de manhã, não demoraram muito tempo e às dezassete e quarenta já estavam à porta do apartamento, quando viram os três colegas de Maria, que a vinham ajudar.

- Boa tarde minhas senhoras. - Disseram os três ao mesmo tempo sorrindo. Já tínhamos tocado à campainha e enquanto iam dizendo isso foram tirando os sacos das mãos delas e foram os cinco para cima.

Os rapazes tinham passado por uma pastelaria e traziam o lanche e os cinco dirigiram-se para a cozinha, deixando os sacos à entrada no Hall e as roupas que vinham em cabides puseram na sala.

- Primeiro temos que lanchar. Disse um deles. _ Não sabemos trabalhar de estômago vazio. - Uma risada geral fez-se ouvir naquela cozinha. Preparam tudo e enquanto iam comendo, os rapazes iam contando a Maria o que se tinha passado nas aulas desse dia, até que um deles disse:

- Maria, sabes que amanhã vamos ter um professor novo? Ele é da escola, mas tem dado aulas a outras turmas mais avançadas, mas o Costa hoje disse que amanhã ele vai substituir o professor José que está doente.

- Como se chama ele? Vocês já o conhecem? - Perguntou Maria

- Sim, temo-lo visto lá pela Academia, mas só sabemos que se chama Pedro e que é uma pessoa de poucas falas e de poucos risos, mas, segundo as outras turmas em que ele é professor, dizem que é muito humano, eles adoram-no.

Maria ouviu esse nome e o seu coração disparou. Esse nome fazia-lhe mal, fazia-lhe dor no peito, mas disfarçou e olhou para Luísa, que ficou pálida, ela sabia que o Pedro iria substituir o professor José, pois Sérgio tinha-lhe dito na véspera e ela com a confusão desse dia, tinha-se esquecido.

- Tenho que fazer algo, eles não se podem encontrar assim dessa maneira. - Pensou Luísa e o seu pensamento não descansou mais até arranjar uma maneira da Maria não se encontrar com o Pedro assim de chofre.

Acabaram de lanchar. Maria mostrou o apartamento aos rapazes e foram para o quarto para montarem a mobília.

Ás dezanove e trinta tinham tudo montado. Luísa ajudou Maria a fazer a cama enquanto os rapazes foram para a sala beber um cerveja.

- Luísa que dizes, eu pagar o jantar aos três? - Perguntou Maria.

- Acho bem. Há ali uma tasquinha onde se come bem e barato e podíamos lá ir os cinco. Eles foram incansáveis, merecem um jantarinho e eu ajudo-te a pagar. - Concordou Luísa.

- Nem penses nisso. Esse jantar é pago por mim e só tenho é que agradecer aos quatro o que têm estado a fazer por mim. Vamos então jantar. - Disse Maria pegando no braço da amiga.

- Espera Maria, ao menos vai-te pentear, estás toda desgrenhada - Disse sorrindo Luísa.

Maria sorriu e dirigiu-se à casa de banho para se arranjar, enquanto Luísa foi à pressa à sala, pegou no poema e, sem que os rapazes reparassem, deixou-o debaixo de uns sacos que estavam no sofá, com muito cuidado para a rosa não se estragar.

- Pronto, a bomba está lançada, será o que Deus quiser. Logo vais ver esse poema Maria e ficas a saber que existe alguém nesta terra que te ama tanto, como tu amas Pedro. - Pensou a Luísa com um sorriso de gozo.

Maria chegou à sala e sorrindo disse:

- Meninos, vamos jantar fora, sou eu que convido.

- Nem penses Maria, vamos jantar fora, mas cada um paga o seu. Estás em mudanças e tens muito onde gastar o dinheiro e nós viemos ajudar porque gostamos muito de ti, não por obrigação. Só nessa condição é que vamos jantar com as senhoritas! - Disse um dos rapazes sorrindo.

- Pronto está bem, aceito. - Disse Maria emocionada com aquelas palavras amigas dos seus colegas e olhou para eles com um olhar meigo de agradecimento.

Foram todos à tasca do Sr. João, sentaram-se numa mesa redonda e Maria que nunca lá tinha entrado ficou admirada com aquela casa. A decoração era rústica, tudo em madeira, desde as mesas aos barcos presos no tecto a servirem de candeeiros, os quadros pintados, com o mar a servir de tema predominante. Via-se que aquela casa era de alguém que tinha a sua vida ligada ao mar.

- Chamam vocês tasca a esta casa maravilhosa? Perguntou-lhes Maria

- Sim Maria. - Disse o Álvaro. - O Sr. João é mergulhador, já foi professor na Academia e deixou-a no dia que abriu esta casa, que ele fez questão de lhe dar o nome de "TASCA DO JOÃO". É aqui que vem a malta toda da Academia, desde que ele abriu e é aqui que passamos o nosso tempo livre, ora para almoçar ou jantar, ouvir música, ou ouvir anedotas e histórias que os mais velhos têm sempre para contar.

- Um cantinho tão agradável, não conhecia isto. - Disse Maria com ar admirado.

- Que conheces tu aqui Maria? - Perguntou Luísa sorrindo. - Rapazes qual o cantinho que Maria conhece nesta terra?

- A âncora. - Disseram os três ao mesmo tempo, seguindo-se uma gargalhada.

Toda a Academia sabia que Maria era uma solitária e que as suas horas de laser eram passadas na praia junto à âncora.

Maria corou porque pensou que eles sabiam que ela ia para lá para pensar no Pedro, mas...

- Não, não sejas doidinha Maria, como sabem eles teus pensamentos? - Falou uma voz dentro de si.

- Eles só sabem o que vêem, tu a dirigires-te para a praia e sentares-te junto à âncora.

- Têm razão, eu não conheço nada, mas um dia vou ficar a conhecer isto melhor que vocês. - Disse Maria levantando a mão num gesto engraçado, como se um dia ela fosse dona do mundo.

Passou-se o serão sem darem pelas horas passarem, num ambiente alegre, de camaradagem e de cumplicidade.

Os rapazes despediram-se ali delas, saindo as duas da tasca em direcção à casa de Maria, onde Luísa a deixou e seguiu para a sua, porque eram quase onze horas da noite e Sérgio entretanto chegaria. Mas ainda lhe disse:

- Maria, estás muito cansada, ainda tens tanto para arrumar em casa, porque não tiras o dia de amanhã de folga? Acabas as mudanças e logo vais no dia seguinte mais descansada, à noite tens que ir ao Instituto e como vais dar aulas com esse cansaço?

- Tens razão Luísa, sinto-me muito cansada e não conseguiria estar atenta às aulas sabendo que tinha isto cá em casa tudo desarrumado. Fazes-me um favor? Pedes ao teu marido que diga amanhã na Academia que não vou?

- Está descansada Maria e vê se dormes bem e amanhã não acordes cedo, descansa que tens o dia todo para arrumar a casa. Até amanhã e um beijo, amiga.

- Até amanhã Luísa e obrigada por tudo.

- Amanhã telefono-te. Agora já podemos contactar por telefone. - Disse Luísa sorrindo e arrancando com o carro.

Maria entrou em casa, largou a mala na entrada e tirou de lá um cigarro.

Um mau hábito que adquiriu no tempo da faculdade. Quando algo a preocupava ou alguma pressão a fazia sentir-se nervosa, sentava-se e acendia um cigarro, deixando-se estar assim até ele se consumir todo, aspirando o seu fumo lentamente, como se ele a ajudasse a raciocinar.

Acendeu a luz da sala e dirigiu-se ao sofá para se sentar e fumar o seu cigarro descontraída. Ia a pegar nos sacos que lá estavam em cima para os pôr no outro sofá, quando sentiu uma picadela no dedo.

- Piquei-me, que coisa esquisita, que será isto por baixo do saco?

Pensando nisso levantou a ponta do saco e ficou pasmada.

-Uma rosa? Que faz aqui uma rosa no meu sofá?

Quando ia para pegar nela reparou que vinha agarrada a um papel enrolado com uma fita cor-de-rosa. Pegou nele tremendo, sem saber o que pensar daquilo.

Tirou a fita, desenrolou o papel e deparou-se com um poema com uma escrita trabalhada, bonita. Ia começar a lê-lo, mas antes sentou-se, acendeu mais um cigarro com as mãos trémulas e ficou a olhar aquele papel escrito, aquele poema cujas letras pareciam querer saltar dele e penetrar nos seus olhos.

Quando conheci tua bela alma bondosa

Meu coração em teus olhos mergulhou

Fazendo crescer meu amor como uma rosa

E desde esse dia no passado ele te amou

Porém a vida nem sempre é radiosa

E num dia da minha vida te arrancou

Levando tua luz, ficando a vida tediosa,

Triste e o coração despedaçado ficou

Devolvendo-me o que um dia tinha levado

Renasceu com luz o que eu tinha desejado

E senti que o destino nos dava a sua mão

Mas desta vez não ficarei parado não

Mesmo que paralise todo o corpo meu

Vou gritar bem alto... Maria quero ser teu!

- Meu Deus, este poema foi escrito pela mesma pessoa que escreveu os que li em casa de Luísa. Quem teria posto isto aqui? - Estava trémula e pálida ao fazer essa pergunta a si mesmo.

- Só pode ter sido Luísa! Ou será que foi um dos rapazes? Oh Deus, para que me torturas assim? Responde-me por favor. Donde veio este poema? - Um grito de revolta soltou-se dentro de si, estava desesperada, pensava que Pedro estava naquela terra, que tinha sido ele a escrevê-los, mas contradizia-se, pensando no poeta desconhecido que escrevia tão bem, com tanta alma, com tanto sentimento.

Num gesto de raiva pegou na rosa, pegou no poema e deitou-os para o meio da sala, saindo de si um choro convulsivo e assim ficou, não sabendo se segundos, se minutos, com as mãos na cabeça.

Quando se acalmou, libertou as suas mãos da cabeça e o seu olhar fixou-se num pequenino cartão que estava no chão. Levantou-se do sofá, foi até onde estava o cartão, pegou nele e leu:

- "Espero-te no sábado às quinze horas na praia junto à âncora".

Ficou estática com os olhos fixos no cartão.

- Esse poeta existe, eu vou vê-lo, eu vou conhecer a pessoa que escreve desta maneira tão sentida, tão dorida, mas... espera Maria, este poema foi-te dirigido, foi para ti que esse poeta o escreveu.

Sentia-se tão confusa que já chamava Pedro ao poeta e poeta ao Pedro e a sua mente já associava um ao outro e isso deixou-a mal, muito mal.

Pegou na rosa e no poema, foi à cozinha e com carinho colocou a rosa dentro duma jarrinha, que tinha comprado na véspera, enchendo-a de água previamente.

Voltou para a sala e colocou-a em cima da lareira, junto à estatueta de pedra e o contraste do vermelho da rosa com o branco da estatueta faziam um conjunto maravilhoso, que a deixou a olhar para ele, sem saber se rir se chorar, tal a confusão que ia dentro de si.

Cheirou a rosa e foi sentar-se no sofá, acendendo mais um cigarro. Fechou os olhos por segundos e imaginou-se na praia da âncora ao lado do poeta.

Várias imagens passaram pelos seus olhos, um rosto desconhecido, com traços do rosto do Pedro, o rosto do Pedro com traços do desconhecido, um poema escrito à mão, uma rosa da cor do sangue.

Um corrupio de ideias que fizeram o espírito de Maria ir para bem longe, onde as almas cantam hinos de alegria e hinos de tristeza.

PARTE X

Ás nove da manhã Pedro entrou na sala de aulas. Os seus músculos contraídos, faziam daquele rosto um ser rude. Sem olhar para ninguém, cumprimentou os alunos com um bom dia em forma de grunhido, que mal se conseguiu ouvir na sala de aulas. Apenas se ouviram algumas vozes a responderem ao seu cumprimento.

- Como já sabem, hoje vim substituir o Professor José que se encontra doente. - Ao dizer estas palavras, Pedro levantou a vista, fazendo o seu olhar correr a sala de aulas, aluno a aluno e nada de Maria.

- Deve-se ter atrasado. - Pensou Pedro. Para tentar descobrir qual o motivo porque Maria nessa manhã não estava na sala de aulas, disse, pegando na caderneta:

- Vou chamar um a um, para ficar a saber os vossos nomes e, quando chamar, levantam-se para eu vos ver e conhecer.

Foi chamando um a um e no final comentou:

- Faltam dois alunos, Maria e Ricardo. Alguém sabe o motivo porque não se encontram na sala?

- Não, a Maria há dois dias que não vem e o Ricardo só faltou hoje.

Nesse momento alguém bate à porta. Pedro ficou paralisado, pensando ser a sua Maria. O seu rosto fica lívido e dentro dele uma mistura de emoções atravessara o seu corpo e a sua alma, mas...

- Pode entrar. - Fez-se ouvir a sua voz forte, não mostrando nela toda a emoção que estava sentindo nesse momento.

- És tu Sérgio! - Exclamou Pedro aliviado ao mesmo tempo que desiludido, por ver que ainda não era nesse dia que se ia encontrar frente a frente com Maria.

Sérgio entrou sorridente na sala, cumprimentando todo o pessoal, pessoal esse que já conhecia, porque já várias vezes lhes tinha dado aulas e dirigiu-se ao Pedro, segredando-lhe algo ao ouvido, ao que Pedro respondeu com um abanar de cabeça.

- A vossa colega Maria, não vem hoje às aulas. Pediu dispensa de dois dias para fazer a mudança de casa. - Disse Pedro.

- Ainda bem que não está doente a nossa menina dos olhos bonitos. - Disse um dos rapazes com olhar maroto.

Pedro deu um sorriso ao de leve e começou a aula. Mas toda a manhã esteve como que ausente, a pensar em Maria, pensando se ela estaria a precisar de alguma ajuda e desejando saber para onde teria ela mudado.

Entretanto... Maria acordou. Espreguiçou-se na cama e o seu primeiro pensamento foi para aquele poeta que lhe escreveu e viu a rosa diante de si, o cartão a convidá-la a ir à praia da âncora no sábado e ficou nervosa.

Saltou da cama, dirigiu-se para o duche e deixou-se estar ali bastante tempo, deixando a água correr pelo seu corpo, sentindo-a como uma carícia que fazia um efeito relaxante.

Acabou de tomar o pequeno-almoço; Saboreou o pão quentinho, que a padeira lhe tinha deixado à porta, com a compota que Luísa lhe tinha deixado na véspera; bebeu um copo de leite a acompanhar a sandes que estava saborosa e uma sensação de conforto tomou conta do seu corpo.

Pegou no telefone, ligou para a sua tia, que não atendeu, tendo deixado Maria pensativa.

- Porquê tia? Porque não me respondes? Preciso tanto de ti neste momento, dos teus conselhos e do teu carinho.

Pensando nisso esticou as pernas e deixou-se estar sentada no sofá. - Não me apetece fazer nada, preciso de falar com alguém, talvez com Luísa! Sim, a Luísa deve saber de onde vem este poema, quem o escreveu e nada me vai dizer.

- Será que a Luísa sabe? - Uma voz interior negava o seu pensamento. - Será que não seria um dos rapazes?

- Chega! - Deu um grito interior. - Não posso viver assim, eu tenho que saber a verdade, eu sou humana, eu sinto, eu sofro, eu preciso de saber a verdade, alguém ma há-de dizer.

Pegou no avental, começando as arrumações da casa, num frenesim próprio de quem estava enervado, próprio de quem queria desenfreadamente esquecer algo e conseguiu pelo resto da manhã deixar de pensar nisso, concentrando-se apenas na sua casa, na maneira como havia de a pôr a seu jeito.

Meio-dia e a fome parecia querer espreitar o seu organismo. Sorriu, admirando-se como era possível ter fome, quando andava tão alterada, mas como isso era algo tão raro, preparou-se e foi ao restaurante da esquina comer uma refeição ligeira, apenas para aconchegar o estômago.

Pensava, mais à tardinha sair e ir às compras, para começar a fazer a comida em casa. Voltou para casa e decidiu.

- Vou telefonar à Luísa para vir cá lanchar a casa. Mostro-lhe o poema e ela certamente terá algo para me dizer sobre isso.

Pegou no telefone, mas, quando ia para marcar o número, arrependeu-se. Colocou-o no descanso e ficou pensativa. Quando deu por si, estava a ligar o número da casa da tia.

- Tia, que saudades. - Sua voz emocionou-se ao ouvir do outro lado a tia responder.

- Maria, que bom teres telefonado. Andava preocupada contigo, liguei para a Academia e disseram-me que não tinhas ido às aulas, mas o Sr. Costa disse-me que estavas em mudanças e aí fiquei mais descansada.

- Sim tia, liguei-te para isso mesmo, para te dizer que já estou no apartamento e que quando quiseres já me podes ligar à vontade. Mas diz-me tia, estás bem?

- Sim filha, estou bem, mas tu não, que se passa? A tua voz está estranha, ansiosa. Sabes que, para esta tua tia velha, nada no teu íntimo me é desconhecido; conta lá o que se passou para estares assim.

- Tia, aconteceu algo estranho. - Dizendo isso, começou o seu relato, desde o dia em que na casa da Luísa leu os primeiros poemas, até ontem à noite em que apareceu aquele poema acompanhado duma rosa no seu sofá. - Que me dizes a isto tia?

- Maria, não tenhas dúvidas, só pode ter sido a tua amiga que lá os deixou. Era muita coincidência esses poemas serem do mesmo género, escritos da mesma maneira e não terem sido escritos pela mesma pessoa.

- Que faço tia? Diz-me, ando tão baralhada. A Luísa tem sido tão minha amiga, porque estará ela a fazer uma coisa destas?

- Olha Maria, fala a voz da experiência. Se a tua amiga te disse que, se dependesse dela, tu irias ser feliz, ela saberá porque está a fazer tudo isso, meu pressentimento é que ela está a trabalhar em conjunto com o destino.

- Sim tia, ela tem sido tão meiga comigo, tem-me ajudado tanto, mas diz-me, falo-lhe no poema?

- Sim Maria, fala-lhe. Mas se ela desviar a conversa, não ligues, deixa-a fazer as coisas à sua maneira. Se foi ela que te deixou esse poema na tua casa, ela se encarregará de provocar, na hora e momento certo, um encontro entre ti e esse poeta.

- Tia, como é bom saber que estás aí, que posso sempre contar contigo, amo-te muito minha tia. - Disse Maria com voz entrecortada pela emoção.

- Tu também és minha filha, Maria. - Disse do outro lado a tia, muito baixinho, como se quisesse que Maria não ouvisse essas palavras. Elevando a voz, continuou: - Amo-te tanto, minha filha.

- Obrigada minha tia. Agora desligo para ir acabar de arrumar a casa e, um fim-de-semana destes, vou aí passá-lo contigo.

- Vem sim filha, até porque tenho aqui uma coisa para ti. Chegou a hora de te dar esse presente, que a vida me fez guardar durante anos, para só ser entregue na hora certa e essa hora chegou Maria!

- Que presente tia? - Perguntou Maria curiosa.

- Saberás quando cá vieres, mas fica descansada, não penses nisso, trata é da tua vida agora por aí, até estar organizada. Adeus filha, até um dia destes - Dizendo isso desligou o telefone.

Maria ficou com o telefone na mão, pensativa.

- Que será que a minha tia queria dizer com aquilo? Oh Meus Deus, mais um problema na minha vida? Não chega o que já me castigaste esses anos todos? - Mais uma vez sua voz interior foi contra ela.

- Não sejas parva Maria, se a tua tia disse "um presente", não poderá ser mais um problema. - Maria sorriu exclamando: - Sim é verdade, ela falou no presente da vida, só tenho mesmo que aguardar.

Poisou o telefone no lugar, levantou-se do sofá e foi continuar com as arrumações. Às quinze e trinta tinha tudo arrumado.

Olhou para o seu apartamento e quase se sentiu a mulher mais feliz da vida, por ver que estava tudo à sua maneira, a seu gosto. Tomou um duche, mudou de roupa e foi às compras a uma loja que ficava perto da casa de Luísa.

Com as mãos cheias de sacos, bateu à porta de Luísa, que a abriu de imediato, sempre com aquele sorriso característico nela, aquele sorriso convidativo, simples, que cativava qualquer pessoa que com ela lidasse.

- Entra Maria, que bom teres vindo. Ainda à pouco pensei em ti e ia telefonar-te assim que acabasse este trabalho de contabilidade.

- Não vale a pena entrar, Luísa. Só vim cá buscar-te para vires lanchar a minha casa, já tenho comida que chegue. - Dizendo isso mostrou os sacos que tinha nas mãos.

- Entra sim, é só acabar isto e vamos no meu carro, não vais carregada até casa com todos esses sacos.

Ao dizer isso, olhou nos olhos da Maria e viu aquele brilho especial que ela punha neles quando algo a preocupava e soube nesse momento que ela já tinha visto o poema, mas nada lhe disse, nenhum comentário fez ao seu estado de espírito, pois esperava que fosse a Maria a falar-lhe nisso.

Maria entrou, sentou-se num sofá em silêncio à espera que a amiga acabasse o trabalho. Pegou numa revista e deu uma vista de olhos por ela, alternando o seu olhar ora pela revista, ora por Luísa, tentando adivinhar se teria sido ela que lá pôs o poema.

Luísa acabou o seu trabalho, arrumou as suas coisas e saíram de casa. Ambas iam muito caladas, como se algo as perturbasse, o que correspondia à verdade, só que cada uma embebida nos seus pensamentos, sem se aperceberem que uma estava magoando a outra com esse silêncio.

Luísa magoada porque sabia que Maria tinha lido o poema e nada lhe dizia e Maria porque tinha quase a certeza que era Luísa a autora daquela proeza e nada dizia, nada fazia para se justificar.

Chegaram a casa de Maria, largaram os sacos das compras na cozinha e seguiram para a sala, onde Luísa, assim que lá entrou, deparou com a rosa que acompanhava o poema, colocada na jarra.

- Já não tenho dúvidas, Maria já o leu. Porquê este silêncio? Que se passa na sua cabeça? No seu coração? Porquê esse olhar de dor? - Ao pensar assim, Luísa sentiu uma tristeza, ela não queria perder essa amiga querida e, com a vontade de a ajudar a ser feliz, estava a perdê-la.

- Luísa, agora que estamos sentadas, e antes de ir preparar o lanche, quero mostrar-te uma coisa, que me deixou emocionada, feliz, triste e também magoada. Muitos sentimentos misturados que me perturbam desde ontem à noite. - Dizendo isso levantou-se, abriu a gaveta do móvel da sala, tirou de lá o poema escrito em papel pardo e, estendendo-o a Luísa, pediu-lhe:

- Lê isso e gostaria de saber se tens algo para me dizer sobre isso, que veio acompanhado com aquela rosa. - Apontando para a jarra que estava em cima da lareira.

Luísa pegou nele e fingiu que estava a lê-lo pela primeira vez, mas ao lê-lo sentiu algo de diferente naquele poema, talvez porque agora conhecia a fundo a história de Maria e sabia que ela nunca iria acreditar que aquele poema não tivesse sido escrito pela mesma alma que escreveu os outros.

- Lindo, mas como veio ele parar à tua mão, Maria? - Perguntou Luísa com um ar muito ingénuo.

- Não sabes Luísa? Não sabes o que fazes? Porquê? Quem é esse poeta e porque me escreve ele estas coisas?

- Maria, terás que descobrir sozinha, eu nada te posso dizer amiga, só te digo que quero a tua felicidade e jamais faria algo que te pudesse prejudicar.

- Eu sei Luísa, mas esse teu silêncio a caminho de casa e o teu olhar, assim que entraste na sala, a dirigir-se para a rosa, fez-me desconfiar que foste tu que colocaste o poema aqui no sofá.

Um sorriso foi a resposta de Luísa. Levantando-se, exclamou em tom alegre:

- Não vim a tua casa lanchar? Olha que a minha criança já reclama.

Maria sorriu e percebeu nesse momento que tinha sido a Luísa quem lá tinha posto o poema com o recado.

- Não lhe vou falar do encontro na praia da âncora, se foi ela que o escreveu, ela saberá o que fazer a isso. Eu vou lá estar, as três da tarde, quero conhecer esse poeta, seja ele quem for. - Pensando nisso, agarrou no braço de Luísa e, sorrindo, levou-a para a cozinha, dando por encerrado esse assunto.

Lancharam, falaram de banalidades, riram-se e ao fim duma hora ambas sabiam que se tinham encontrado novamente. A amizade delas era bastante forte para que fosse abalada por uma coisa insignificante.

Maria sabia que ia ao encontro do poeta e Luísa já não duvidava disso também. Mesmo sabendo que qualquer uma delas tinha essa certeza, nenhuma quis falar dela.

Chegou o dia D e Maria andou ansiosa toda a manhã de sábado, não conseguindo fazer nada porque o seu pensamento estava preenchido com a imagem do Pedro, uma imagem deturpada com a sobreposição de outra imagem "a do poeta". Uma imagem sem rosto, apenas preenchida por uma meia dúzia de palavras transformadas num poema, uma imagem de alma, de sentimentos, a fazerem frente ao rosto de Pedro, ao amor que Maria nutria por ele há dezassete anos.

Todos esses sentimentos faziam uma baralhada na sua cabeça. A confusão preencheu a sua alma, fazendo-a sentir-se uma adolescente em que "os sonhos" tornaram-se flocos de neve, acariciando o seu rosto a "emoção" os pingos de chuva, molhando suas pestanas e a "ansiedade" uma estrela, dando brilho aos seus olhos.

Maria sonhava como seria esse encontro. Fez planos, imaginou situações e nenhuma servia para o seu espírito ansioso. Então optou por deixar de pensar, iria ao encontro do poeta e seria um encontro natural e, pensando nisso, sorriu da sua idiotice.

- Como se pode ser natural, num encontro com uma pessoa que te escreve poemas e nem sabes quem ela é?

Eram catorze e quarenta e cinco, quando Maria saiu de casa em direcção à praia da âncora onde iria encontrar o seu poeta.

O seu andar leve, parecia voar dentro dos seus ténis brancos que combinavam com o preto e branco do seu fato de treino e da sua T-Shirt interior.

O seu cabelo apanhado atrás, em forma de rabo-de-cavalo e o tom suave que ela dera aos seus lábios, misturado com o brilho de ansiedade de seus olhos, davam um toque de juventude e beleza que agradava e a fazia sentir-se bem consigo própria.

Davam as três horas da tarde, quando Maria chegou à praia da âncora e o seu olhar parou no infinito, assim que se sentou na areia macia e morna, com o sol de Fevereiro ao longe a enviar os seus raios em direcção ao mar, fazendo faíscas prateadas que davam uma paisagem sem igual.

Ao olhar fixamente essa mistura, Maria sonhou ser Deus que lhe enviava o seu poeta numa bandeja de prata, para lhe oferecer seu amor, a sua alma e o seu carinho.

Olhou o relógio, tinha-se passado uma hora e do poeta nem sinal. O seu desespero começou a transformar-se em raiva, em dor, mas Maria não desistia.

- Ele virá sim, Luísa não me ia enganar dessa maneira, ela não iria brincar com os meus sentimentos, eu não vou sair daqui, eu esperarei três horas se for preciso, mas eu hoje descubro quem é esse poeta.

Pedro tinha sido avisado por Luísa para ir ter à praia da âncora, que lá o esperava uma boa surpresa. Quando ele lhe perguntou qual era a surpresa, recebeu como resposta, tal como Maria recebera, um sorriso, acompanhado destas palavras:

- Vai lá as três horas, não faltes. É o teu destino...

Quando ia a caminho da praia, Pedro foi interceptado por um colega que lhe pediu ajuda porque um dos alunos do final do curso tinha tido um acidente e precisavam da sua ajuda.

Pedro nesse momento não pensou na surpresa que o esperava na praia e correu para dentro da Academia em auxílio dos colegas, mas, uma hora e meia depois, olhou o relógio e pensou na surpresa, perguntando-se:

- Que surpresa será essa? Seja o que for, assim que sair daqui dou um salto à praia e verei o que lá estará para mim.

Maria esperou as três horas que prometera a si mesma. Já o sol se punha ao longe, quando se levantou devagar, desiludida, com os braços ao longo do corpo.

Caminhou em direcção à água, com os ténis numa mão e o poema na outra, com a imagem da desilusão estampada no rosto. Deixou-se caminhar na água, sentindo-lhe o fresco e as carícias nos pés, como se estivesse a consolá-la. Maria, triste e desiludida, falou com o mar:

- Meu amigo, nem tu hoje me consegues dar paz, dar alegrias, porque a minha alma está revoltada demais. A minha dor é enorme, não sei se da desilusão do poeta não aparecer, se da dor de saber que minha amiga me mentiu.

Continuava pela praia com os pés na água, quando reparou que, ao longe, uma sombra corria em direcção contrária à sua e parou. Ficou estática e a sua respiração ficou ofegante. - Meu poeta veio, eu sabia. - Voltou para trás para ir ao seu encontro.

Escurecia muito depressa e, quando Maria voltou a ver a sombra, apenas a viu esfumar-se numa bolinha preta muito pequena, como um ponto no horizonte.

Ainda correu nessa direcção, mas nada viu. Ela não sabia que aquela sombra era o seu poeta Pedro, que, assim que se despachou, foi a correr para a praia, porque no fundo ele tinha a esperança que essa surpresa fosse Maria. Mas chegou junto à âncora e nada viu. Nada lhe mostrava que ali houvesse uma surpresa a esperá-lo.

Foi até à água para se acalmar, porque estava nervoso e essa água gelada a que estava habituado o iria pôr de novo em forma.

Tinha sido uma tarde terrível, num desespero para, juntamente com os colegas, salvar o aluno que, por brincadeira e inconsciência, se tinha proposto mergulhar sem condições.

Teve a sorte de alguém chegar a tempo e, entre professores e alguns alunos mais experientes lá o salvaram, tendo-o levado para o centro de saúde onde ficou em observações, mas já fora de perigo.

Pedro olhou para céu e viu-o escuro como se ameaçasse chover. Saiu da água, já mais descontraído, vestiu-se mesmo molhado e seguiu para casa, pois às vinte e trinta iria jantar a casa do Sérgio e Luísa.

Entretanto, Maria tinha ido a uma pastelaria lanchar. Não lhe apetecia ir para casa, não podia sentir-se fechada, porque os seus pensamentos hoje iriam atraiçoá-la, dando lugar ao choro, situação em que ela não queria cair por orgulho, por raiva.

Quando olhou o relógio eram vinte horas. Saiu da pastelaria, viu um cartaz anunciando um filme e pensou:

monstruosidade e fugi daqui para bem longe. Fugi para junto da tua mãe, Maria. Sabia que ela me iria ajudar a ter o meu filho, ela não deixaria que ele morresse por culpa dum sem vergonha, por culpa dum ser que nem pai sabia ser.

- Estive com a tua mãe e o teu pai todo o tempo da gravidez. Quando estava de sete meses comecei a sentir-me muito fraca, muito mal e em vias de perder o meu filho. Os teus pais levaram-me para Coimbra, onde estive até ao fim da gravidez. - Mais uma pausa, agora seguida de lágrimas que corriam pelo rosto da tia, deixando-o desfigurado, tal o tamanho da dor de ter que con- Porque não? Vou sim, mesmo que o filme não seja bom, pelo menos nestas duas horas não pensarei em nada. - E seguiu em direcção ao cinema para comprar o bilhete.

O filme era uma história de amor, onde, no fim, o amor saía vencedor, ficando os dois juntos e felizes e Maria sorriu com ironia.

- Certamente que sim, não fosse aquilo um filme. Será que terei que entrar numa tela para ser feliz também, meu Deus? - Gritou desesperada para dentro de si.

Saiu do cinema, sem vontade para nada, nem o filme a tinha acalmado, pelo contrário, aquela cena tinha-a posto revoltada com a vida, com Deus, com o mundo.

Entretanto Pedro, enquanto jantava com os seus amigos, mostrando sinais de visível cansaço, questionou a Luísa acerca da surpresa da tarde, contando que chegou lá com três horas de atraso, pelo motivo que ela já sabia, dado que o seu marido também lá havia estado.

- Que surpresa era essa Luísa, que me esperava hoje às três da tarde?

- O teu destino Pedro. Lá junto à âncora, estava o teu destino à tua espera. - Disse Luísa levantando-se da mesa, como se mais explicações lhe fossem vedadas e dirigiu-se para outra sala para telefonar à Maria.

- Maria, que é feito de ti? Desde ontem que não dás sinais de vida.

- Olá Luísa. - Disse Maria, tentando esconder a secura da sua voz. - Estou bem. Esta tarde fui até à praia, como sabes e não se passou nada de especial, apanhei ar, molhei os pés, sonhei e quase que adormeci esperando... - Essas últimas palavras iam cheias de ironia.

Luísa sentiu um baque no coração, mas nada conseguiu replicar. Ela sabia a que Maria se referia, mas como ia explicar que o Pedro nesse dia tinha ido socorrer um aluno? Para isso teria que lhe dizer quem ele era. Então, lembrou-se de dizer:

- Maria sei que estás magoada comigo, mas amiga, eu sou tua amiga, confia em mim por favor, nem sempre o que parece ser, corresponde à realidade.

- Luísa, eu confio em ti e a prova disso é que fui à praia esta tarde a teu pedido indirecto para ver esse poeta e que vi eu? Nada. - Esse nada já num tom de revolta.

- Maria, tu vais conhecê-lo, tu vais vê-lo, ele esteve lá, só que muito mais tarde. Mas nada mais te posso dizer minha amiga, por favor, mais uma vez te peço, confia em mim, eu quero que sejas feliz e vais sê-lo, não me chame eu Luísa.

Maria ao ouvir essas palavras lembrou-se da sombra que viu correr na praia já ao anoitecer e mais uma vez confiou na sua amiga, mais uma vez lhe deu o benefício da dúvida e respondeu:

- Luísa, vou confiar em ti. Eu esperei três horas e vou esperar mais umas tantas, mas eu tenho que conhecer esse poeta, eu tenho que o tirar de minha ideia, porque eu amo o Pedro e não quero mais ninguém na minha vida.

Luísa sorriu ao ouvir essas palavras e mais uma vez pediu a Deus pela felicidade de Maria e de Pedro. Os seus amigos mereciam essa felicidade, pelo que sofrerem ao longo desses anos todos.

Ainda falaram mais um pouco e Luísa convidou Maria para lá ir almoçar no domingo. Maria aceitou, ela precisava de falar com Luísa, precisava de tirar todas essas dúvidas que atormentavam a sua alma.

Pedro andava confuso com as sugestões de Luísa, mas, tal como Maria, acreditou nas suas palavras e na sua amizade e propôs-se voltar à praia da âncora para ver a surpresa que o esperava. Ele sabia que essa surpresa vinha da parte da Luísa e, teimosa como era, não ia desistir de conseguir o seu objectivo.

PARTE XI

Faltavam quatro dias para começar as férias do Carnaval e Maria pensou aproveitar esses dias para visitar a sua família. Já tinha saudades deles, da sua tia, do seu carinho, do carinho da sua prima.

- Logo que venha da Covilhã, vou continuar à procura desse poeta, eu não posso desistir agora, eu tenho que definir os meus sentimentos.

No Domingo de manhã, Maria preparou-se para ir a casa da Luísa almoçar. Vestiu uma roupa simples, porque, depois do almoço, ainda iria até a praia espairecer o seu espírito, que, embora agora mais calmo, ainda se encontrava baralhado e nada como o mar para o acalmar, para o esclarecer.

Chegou à casa de Luísa eram doze e trinta. Enquanto Sérgio foi ao café comprar pão e beber uma bica, as duas ficaram a sós na cozinha.

- Luísa, desculpa a minha brusquidão de ontem à noite, mas eu estava tão magoada. Eu tinha tantas esperanças de encontrar esse poeta, saber quem ele era, falar dos seus poemas, saber o porquê de ele me ter escrito aquele tão lindo e ele não me apareceu. Fiquei desiludida, Luísa!

- Maria, olha para mim, olha nos meus olhos e diz-me. - Gritou-lhe Luísa, já não contendo as lágrimas nos seus olhos.

- Achas que eu te ia mentir? Achas que eu ia brincar com os teus sentimentos? Esse poeta existe e, tal como tu, esteve na praia da âncora para ir ao teu encontro, mas a vida por vezes prega partidas e ele chegou bastante tarde e já não estavas lá.

Maria não queria ver a sua amiga chorando por causa da sua dúvida e, abraçando-a, disse ao seu ouvido:

- Luísa, minha amiga, não chores. Eu acredito em ti, eu sei que vou ser feliz se tal depender de ti, um dia eu volto à praia da âncora em busca do meu poeta. - Dizendo isso um sorriso doce acompanhou um beijo na face de Luísa.

Assim que o Sérgio chegou foram almoçar, num ambiente alegre, sem sombras do dia anterior. A alegria juvenil de Sérgio ajudou àquele clima ameno e alegre.

Eram dezasseis horas, quando Maria se despediu dos seus amigos, desculpando-se que tinha ainda coisas para arranjar em casa.

Não lhes quis confessar que ia até à praia ver o seu amigo, o seu confidente "O Mar", porque Luísa ficaria preocupada pensando que ela iria à procura do poeta.

Saindo de casa dos amigos, Maria caminhou muito lentamente, em forma de passeio, em direcção ao mar, com os seus passos calmos a acompanhar o seu pensamento, que ia agora mais calmo, após a conversa com Luísa.

- Meus Deus, como és lindo! - Exclamou Maria, assim que chegou junto ao mar e viu-o revolto nas suas ondas que pareciam gritar o seu nome, como a chamando para lhe contar um segredo.

Segredo esse que Maria não soube interpretar, senão saberia que a uns metros dali estava Pedro, sentado na areia, contemplando o mar, pensando no seu amor, desejando que esse mar trouxesse a sua Maria para junto de si, para a abraçar, a beijar, a contemplar, fundir os seus olhos e os seus lábios num só, como se nada mais na vida tivesse valor.

Tão perto estavam um do outro e tão longe ao mesmo tempo, como se o mar que ambos amavam, os separasse, os quisesse ver separados, quando esse mar os queria juntar, mas o destino ainda achava que era cedo para esse encontro, ele queria fortalecer mais os seus sentimentos, enraizá-los, para que nada nem ninguém os pudesse separar um dia.

Como se tivessem combinado, ambos se levantaram da areia eram dezanove horas. Aquela sintonia entre os dois era como um íman que os atraía, mas, que por teimosia do destino, teimava em separá-los.

Cada um na sua direcção, caminhavam em sentidos contrários para as suas casas. Já era escuro e a praia ficava iluminada pelo luar.

A dada altura, como que movido por uma força estranha, Pedro virou-se para trás e viu uma sombra caminhando e sorrindo, pensou:

- Mais um solitário como eu. Quem sabe se alguém como eu que vem aqui deitar suas mágoas para este mar imenso. - Olhando novamente para trás, tal como Maria na véspera, viu essa sombra desaparecer no horizonte.

Chegou outra semana e com ela, as férias do Carnaval e Maria decidiu ir à Covilhã como tinha pensado uns dias antes. Arrumou algumas coisas num saco e partiu, deixando o caso Pedro/Poeta por uns dias.

Ela teria tempo de procurar a sua felicidade, pois se tinha esperado dezassete anos porque não esperar mais três ou quatro dias?

- Quando vier vou revolver esta terra, vou revolver este mar, mas eu vou descobrir quem é esse poeta e o porquê dele me fazer esquecer por momentos que amo Pedro.

Telefonou à Luísa a participar-lhe a sua saída e deu-lhe o número de telefone da casa da sua tia, para o caso de ela precisar de lhe falar.

De seguida, telefonou ao seu primo avisando-o da sua chegada e seguiu a caminho da estação de comboios. Quando chegou à estação faltava ainda meia hora para seguir viagem a caminho de casa de sua tia.

Durante a viagem, Maria ia vendo aquela paisagem, tudo lhe parecia diferente da sua viagem para o litoral. Hoje, as árvores, o céu, tudo lhe parecia mais leve.

Quando partiu da terra, levava consigo algumas esperanças, hoje a caminho da mesma já levava algumas realidades consigo, embora a realidade maior ainda não a tivesse encontrado.

Quando chegou, olhou pela janela da carruagem e viu o seu primo, acompanhado da Joana, que já a esperavam com ansiedade.

Soltou do comboio e correu para eles abraçando-os, como se já os não visse há muitos anos e só tinha passado um mês e meio da sua saída de casa.

Durante o caminho foram falando, enchendo Maria de perguntas, às quais ela não se recusou a responder, falando com franqueza, da solidão que sentiu nos primeiros dias, da sua nova amiga, da sua mudança...

Sem darem por isso estavam em frente à casa da tia Sofia, que, ouvindo o carro chegar, correu a abraçá-la, fazendo-a entrar para casa.

- Maria, vamos jantar, o comer está pronto, só esperava a vossa chegada.

- Sim tia, venho esfomeada e, ao vê-los aqui todos juntos comigo e este ar da serra, abriu-me o apetite. - Disse Maria sorrindo de felicidade por estar novamente entre os seus, sem ser por obrigação.

Foi um jantar alegre, em que a família estava toda reunida, em que falaram de tudo, das novidades de Maria, das novidades da terra.

Eram vinte e três e trinta, quando Joana e o marido se retiraram e, copiando o seu gesto, os dois primos também se foram deitar, porque no dia seguinte tinham que se levantar muito cedo.

Maria ficou a sós com a tia. Durante o jantar, reparou que o olhar da tia estava inquieto, apesar da alegria de a ter ali e, como de costume, não deu voltas à questão e fez a observação repentinamente:

- Tia, não estás bem, nota-se no teu olhar, sei que tens algo para mim, sei que esse algo é bom, mas também doloroso, senão não estavas nesse estado de ansiedade.

- Maria... - Um silêncio se fez ouvir naquela sala

- Tia fala,... Vai buscar o que tens para mim.

- O que tenho para ti são as fotos e as recordações dos teus pais, mas... - Outro silêncio pesado em volta desse mas...

- Mas? Fala tia, pelo amor de Deus, não me deixes nesta ansiedade, basta a tua, que se vê que não é pequena. - Gritou Maria já sem se poder controlar.

- Tens sono Maria? Estás cansada?

- Não tia, sabes que mesmo que estivesse com sono, não me iria deitar sem saber o que tens para mim. - Disse Maria já enervada e cheia de ansiedade.

Maria levantou-se do sofá, dirigiu-se à janela, abriu-a, deixando entrar pela casa a dentro essa aragem fria da serra. Mas ela precisava dum cigarro naquele momento...

- Sem um cigarro acho que me vou descontrolar. Que se passará com a tia Sofia?

Deixou-se estar uns segundos em silêncio, esperando que a sua tia falasse, até que se ouviu a sua voz:

- Maria, vou contar-te uma história. Não me interrompas até eu chegar ao fim, senão não irei conseguir acabá-la.

- Sim tia, conta. Eu escuto-te. - Disse Maria, continuando à janela sem olhar para trás, aspirando o fumo do seu cigarro com calma, uma calma que estava longe de sentir.

- Há trinta e dois anos atrás... - Começou a tia Sofia o seu relato. - Eu conheci um homem, que não era o teu tio, o pai de meus filhos, era um homem todo interessante, que me fez apaixonar logo na primeira vez que o vi. - Parou respirando fundo, como se não tivesse forças para continuar.

- Sim? E...? - Interrogou Maria, fechando a janela e indo sentar-se ao lado da tia, com o olhar fixo no dela.

- Namorei com ele uns tempos e engravidei. Quando ele soube disso, entrou em pânico, não quis o filho e queria que eu abortasse, que matasse o meu filho. - Mais um silêncio, como se o que viesse a seguir a magoasse e magoava sim, pois ela sabia que a mágoa se ia estender a Maria, mas continuou...

- Eu não podia matar o meu filho, ele estava dentro das minhas entranhas, já o sentia mexer, já sentia a sua vida dentro de mim, não podia fazer essa tar o que vinha a seguir.

- Continua tia. - Disse Maria pondo a sua mão em cima da cabeça da tia fazendo-lhe carinhos nos seus cabelos. - Ela adivinhava que o que vinha a seguir iria fazer sua tia sofrer muito, senão ela não estaria lavada em pranto.

- O meu filho nasceu em Coimbra, mas muito mal. A sua respiração era fraca, os médicos não lhe davam mais que umas horas de vida, porque eu, Maria, durante a gravidez, contraí a tuberculose e estava começando a contaminar o bebé.

- Com o parto e a doença eu entrei em estado de choque, deixando de conhecer as pessoas e foi a tua mãe que se encarregou de olhar pelo bebé. Enquanto ele esteve internado no hospital, a tua mãe vinha todos os dias a Coimbra para nos ver. E estive quinze dias assim.

- Um dia, de manhã, acordei e vi a tua mãe com o bebé ao colo e, todo aquele mundo que esteve esquecido na minha memória, me veio à ideia e chorei de alegria ao ver que o meu bebé estava vivo graças aos cuidados dos médicos e ao o carinho dos teus pais. Tinham-lhe devolvido a vida, mas...

Maria estava sem fala. Queria perguntar pelo bebé e queria pedir à tia para contar o resto da história, mas teve medo do que ia ouvir e fez silêncio, um silêncio que sua tia acompanhou, mas a custo, perguntou-lhe:

- Mas...? - E aguardou que a tia continuasse.

- Eu estava muito mal Maria. Eu não poderia ficar com o meu bebé, pois ele estava muito fraco e eu, com a minha doença, não poderia tomar conta dele como seria desejável.

- A tua mãe levou o bebé para casa, enquanto eu fiquei no hospital durante meses. No dia em que saí, os médicos disseram que seria perigoso eu ficar com o bebé antes dele ter três anos de idade, embora já pudesse fazer a minha vida quase normal.

- No dia que cheguei a casa dos teus pais, vi o meu filho ao longe e como estava grande e bonito! Os teus pais amavam-no como se fosse deles.

Falámos muito nessa noite, até que cheguei à conclusão que o meu filho merecia uma vida melhor do que aquela que eu lhe poderia dar nesta aldeia sem condições e ele tinha ficado com mazelas, que teriam de ser tratadas em Coimbra, todas as semanas e eu não tinha condições de o fazer. Eu queria o meu filho forte e são e quem melhor para cuidar deles que os teus pais?

- Tia, onde está o teu filho? Que foi feito dele? Não é o meu primo mais velho, porque ele só é mais novo que eu quatro anos. Onde está esse teu filho criado pelos meus pais. - Perguntou finalmente Maria.

- Aí. - Dizendo isso apontou para Maria, tapando a cara num choro compulsivo.

- Aí..? Onde tia? Porque apontas para mim? - Gritou Maria, já vendo a verdade dura e crua diante de seus olhos. - O teu filho, sou eu tia? Diz-me a verdade, não me escondas nada por favor.

- Sim Maria, o meu filho, que tive há quase trinta e dois anos, és tu.

- Não, não! - Gritou Maria... E o seu grito foi tão forte de dor, de desespero, que os seus primos se levantaram da cama e correram para a sala, ver o que se passava.

Quando lá chegaram, depararam-se com aquele espectáculo de dor e souberam de imediato o que se estava a passar, porque a mãe, assim que eles cresceram, contou-lhes a verdade, verdade essa que eles aceitaram e que fez com que a amassem cada vez mais pelo sacrifício que tinha feito.

- Tia, conta-me tudo, tudo por favor, ao pormenor. Mas antes responde-me, porque me abandonaste? Porquê? - E mais um grito de dor, de raiva, de revolta saiu de sua alma.

- Eu não te abandonei Maria! Todos os meses ia ver-te a casa dos teus pais, mas não podia agarrar em ti, tinha que te ver com o rosto tapado, só os olhos a descoberto para não te contaminar.

- Abandonaste-me sim tia, porque ao fim de três anos eu poderia vir para ao pé de ti. Porque não vim? Diz-me porquê?

Como ela estava magoada nesse momento. Revoltada, levantou-se e agarrou a tia pelos ombros abanando-a, como se quisesse magoá-la.

Mas, a tia continuou:

- No dia que fizeste três anos, eu fui lá a casa para te ir buscar. Fizemos uma festa de anos para ti, cujas fotos irás vê-las daqui a pouco, mas na hora que me estava para vir embora contigo, a tua mãe agarrou-se a mim desesperada a pedir que não lhe tirasse o seu tesouro, porque senão morria.

- Foi então que soube que ela jamais poderia ter filhos. Eles nunca me tinham contado isso. Mesmo assim, no dia seguinte, trouxe-te comigo para aqui Maria. Tu eras a minha filha e a tua mãe sabia disso, ao tomar conta de ti. Eu não poderia deixar-te lá.

- Então porque me criei com eles? Porque tenho o nome deles se tu me trouxeste para aqui para junto de ti? - Perguntou Maria com uma voz de desprezo.

O tom de desprezo que se fez ouvir na sua voz, deixou a sua família pensar que tinham acabado de matar a doce Maria, aquela mulher meiga que sempre conheceram, aquela mulher/menina que sempre tinha uma palavra doce para todos.

Nesse momento, sentiram pena e raiva da vida, daquele homem que abandonou uma mulher com uma filha nos braços, deixando-as no estado em que ambas estavam, num desespero, numa dor difícil de se ver, no sentir de todos esses sentimentos negativos.

- Tu vieste comigo, mas... Maria, tu deixaste de dormir, de comer, tu chamavas pela tua mãe dia e noite, tu adoeceste Maria com saudades da tua mãe. Estiveste muito mal e, um dia à noite, desesperada peguei em ti, meti-me no comboio e fui a casa dos teus pais. Quando lá cheguei a tua mãe estava muito mal.

- Tal como tu, a tua mãe já não se levantava da cama e aí deparámo-nos com um milagre, Maria.

- Eu coloquei-te no chão e tu, com as poucas forças que tinhas nas pernitas, forças que te tinham abandonado no dia em que vieste para esta casa e que nesse momento voltaram, correste para o quarto da tua mãe gritando pelo nome dela.

Ninguém dos presentes se atrevia a respirar quanto mais a interromper o que dizia a tia/mãe e esta continuou dizendo...

- A tua mãe não te ouviu porque estava muito mal, mas tu saltaste para cima dela, chamando-a e abraçando-a e ela abriu os olhos e agarrou-te sem saber se sonhava ou se era a realidade e deixou-se ficar assim, adormecendo novamente, contigo naquela posição.

- No dia seguinte, a tua mãe abriu os olhos e viu-te, levantou-se da cama sem forças e correu para ti, mas, ao correr, caiu desmaiada. Abraçaste-a chamando-a, sem saberes porque ela não te falava. Eras muito pequenina, mas o instinto fez o resto. Beijaste-a e ela abriu os olhos, recuperando dum sono que durou tantos dias, como dias estiveste aqui nesta casa.

Recuperou o fôlego e continuou:

- Nessa hora decidi. Chamei o teu pai à sala, que me seguiu chorando como se fosse uma criança e disse-lhe que te ia dar a eles para adopção. Preferi perder-te como mãe, porque tu não me sentias como tal, do que ver as duas, tu e a tua mãe, a sumirem-se dia para dia.

Foi assim que se passou, Maria - Disse a tia Sofia, abandonando a sala com os pés a arrastar, os braços caídos ao longo do corpo, como se o mundo tivesse acabado para si naquele momento, tal o peso da sua dor, mas ao mesmo tempo um alívio, porque, nessa noite, tinham-se acabado as mentiras.

Maria ficou com os seus dois primos na sala. O silêncio era o pano de fundo, a tristeza era os actores e a dor era a peça de teatro.

- Porquê, Jorge? - Perguntou Maria muito baixinho, como se já não tivesse forças para falar.

- Maria, não sei o que te dizer. Nós já sabemos dessa história há dez anos, pois a nossa mãe, assim que atingimos a idade de compreendermos, contou-nos tudo e nós, tal como tu, nos revoltámos, mas depois compreendemos a sua atitude e hoje louvamos o seu acto.

- Eu não posso aceitar Jorge. Eu perdi dezassete anos da minha vida, diz-me porquê essa mentira durante tantos anos? - Perguntou-lhe gritando.

- Maria, apenas não soubeste a verdade, porque a nossa mãe sempre te deu amor e foi esse amor excessivo que ela te dava, que fez com que ela um dia nos contasse a verdade, para que o pudéssemos compreender.

- Por isso me deste aquele dinheiro, não foi Jorge, por ser tua irmã? Era a esmola que a irmã pobre precisava? - Era tanta a raiva e revolta nessas palavras que Maria nem viu que magoou o seu irmão.

Jorge colocou as mãos na cabeça, mas antes olhou para Maria com um olhar de reprovação, um olhar de mágoa e respondeu:

- Como estás a ser injusta Maria. Eu, assim como o Miguel e Joana, sem sabermos que o éramos, sempre te amámos como irmãos, assim como tu a nós, Porque me ofendes agora?

Maria levantou-se do sofá, aproximou-se de Jorge e baixinho disse-lhe:

- Perdoa-me meu primo, tu não tens a culpa, tu que foste sempre meu amigo, que sempre me defendeste na escola, tu não merecias as minhas palavras amargas. Perdoa-me, meu irmão. - Dizendo estas palavras assustou-se e deu um grito de revolta.

- Não, não, eu não tenho irmãos, não tenho pais, eu não tenho ninguém, não sou ninguém, eu sou a parente pobre que acolheram por caridade. - Dizendo isso chorou,... Chorou muito.

Jorge aproximou-se dela, fê-la sentar-se, abraçou-a bem forte, como se a quisesse proteger de todo o mal, de todas as injustiças da vida.

- Tens irmãos sim, minha menina, um irmão que te quer bem, um irmão que fará tudo para que a vida não te magoe mais. - E, pegando nela, acompanhou-a ao quarto e fê-la deitar-se.

Maria já sem forças para resistir deitou-se. Jorge descalçou-a, tapou-a e sentou-se à beira da cama, deixando as suas mãos deslizarem pelos seus longos cabelos, até que exausta adormeceu, como se fosse uma criança, com a cabeça deitada na almofada e as faces entre as mãos de Jorge, que ali se deixou ficar até se certificar que ela dormia profundamente.

No dia seguinte, Maria acordou e ainda sonolenta olhou para aquele quarto e não se lembrava de nada.

- Que faço neste quarto? - Uma interrogação que demorou segundos, porque a seu lado estava o urso que toda a vida a acompanhou e que Maria, com a pressa de se ir embora, o esqueceu no seu quarto.

Agarrou-se a ele como se quisesse proteger os seus pensamentos, mas esses vieram ao de cimo e reviveu a noite passada e novamente voltou a revolta ao seu espírito atormentado. Virou-se para o outro lado da cama e duas lágrimas rolaram pelo seu rosto.

- Que faço, Meu Deus? Dá-me uma resposta por favor, se ela é minha mãe ajuda-me a perdoá-la e a aceitá-la como tal.

Tão envolvida estava nos seus pensamentos, que nem deu pelo abrir da porta. As lágrimas teimavam em escorrer pelo seu rosto desfigurado, mas, ouvindo um barulho perto de si, levantou a cabeça e viu a sua tia junto a si.

- Vai-te daqui por favor, agora não, não te quero ver, deixa-me só, deixa-me pensar. - Disse com voz de raiva, uma raiva acompanhada de dor, de desespero.

- Sim Maria, eu vou, só vim ver se estavas bem. - Disse a tia muito desgostosa e nesse momento, sentiu que tinha perdido mais uma vez a sua filha e, não bastando isso, perdera também a sua sobrinha.

Mais uma vez, arrastando os pés e com a cabeça baixa, saiu do quarto sob o olhar atento de Maria que respondeu:

- Como querias que estivesse? Diz-me? Achas que estou bem? - Sofia parou, olhou para ela com um olhar dorido, apontou para a cómoda e disse.

- Está aí o teu pequeno-almoço filha, estou na cozinha se precisares de mim. - E acrescentou: - O teu primo pode entrar? Ele quer falar contigo.

Não respondeu, mas viu a cabeça do primo espreitar por entre a porta enquanto a tia saía.

- Maria, hoje não fui trabalhar, não podia deixar-te sozinha. Toma o pequeno-almoço. - Disse, puxando a bandeja para junto de Maria. - Veste-te que vamos hoje os dois à Serra da Estrela.

Jorge tinha o condão de a saber levar, com a sua voz enérgica, mas meiga e Maria mais uma vez não reclamou.

Pegando no copo de sumo de laranja, bebeu-o dum trago. A sua boca estava seca de tanto chorar, a sua voz rouca, o seu intimo desprovido de toda a meiguice e o seu olhar gélido, que fazia doer para quem nele se fixasse.

Jorge sorriu para ela, com um sorriso carinhoso e, tal como na véspera, sentou-se à beira da cama pegou nas suas mãos sussurrando-lhe:

- Não me negues o prazer de te chamar maninha, eu amo-te tanto minha irmã, o que eu daria para toda a vida te ter chamado assim.

Maria olhou para ele e um sorriso aflorou aos seus lábios e, como precisando dum carinho, pegou nas suas mãos que estavam entrelaçadas nas suas, encostou-as ao seu rosto, deixando-se estar assim algum tempo e, quando voltou a si, uma espécie de paz estava voltando a si.

- Levas-me à Serra da Estrela, Jorge? De verdade? - Os seus olhos brilharam de emoção.

- Claro, maninha, quem é o teu amigo que te acalma nas horas más, sem ser o mar? - Indagou sorrindo.

- A Neve... ela dá-me paz na alma e, tal como o mar, ajuda-me a raciocinar. - Dizendo isso levantou-se da cama, deu um beijo ao primo e saiu do quarto a caminho da casa de banho.

Quando já estava vestida, foi ter com o primo à sala para seguirem para a Serra da Estrela, e, cruzando-se com a sua tia, baixou os olhos.

- Não consigo olhar para ela, quanto mais dar-lhe satisfações.

Estavam já na Serra da Estrela quando Maria pediu ao Jorge para irem beber um café, com o que ele concordou de imediato, porque estava muito frio e o café iria confortá-los. Pegou na sua mão e levou-a para dentro duma tasquinha.

Acabaram o café e foram para junto da neve. Maria perdeu o seu olhar por aquela montanha imensa, que ainda estava cheia de neve, devido ao nevão que tinha caído na véspera.

Em silêncio, nada dizia, nem os músculos da cara davam um índice do que ia na sua alma, no seu pensamento. Um rosto sereno, mas um olhar duro, olhar esse que fazia o azul dos seus olhos parecer o mar em dia de tempestade, uma mistura de azul, de cinzento, uma cor indefinida que Jorge, ao olhá-los, não soube decifrá-la.

Maria pegou na manta que tinha nas mãos, estendeu-a e sentou-se nela, de braços cruzados entre os joelhos. Jorge ao vê-la sentar-se, imitou-a, sentando-se a seu lado e, passando-lhe o braço pelos seus ombros, disse-lhe:

- Maninha, agora que estamos sós, nós dois e a natureza, olha-me nos olhos e diz-me:

- A Natureza é perfeita? - Maria olhou para ele com olhar inquiridor e respondeu.

- É sim Jorge, é perfeita.

- Não Maria, estás enganada, se fosse perfeita agradava a todos. Tu adoras a neve e o mar, no entanto há quem já ficou sem a sua família por causa deles. Achas que essas famílias aceitam a natureza como sendo perfeita?

Maria ficou a pensar nessas palavras e compreendeu a lição que o seu irmão estava a querer dar-lhe. Olhou para ele e disse-lhe:

- Eu não posso perdoá-la Jorge. Ela mentiu-me durante anos! E, deitando a cabeça no seu ombro, chorou mais uma vez.

Jorge respeitou as suas lágrimas, mas quando a viu mais calma replicou:

- Podias não perdoá-la, se ela alguma vez, ao longo destes anos, tivesse feito diferença entre ti e nós. Mas não Maria, ela amou-nos aos quatro de igual maneira. Ela sacrificou-se para nos criar, ainda éramos 4 crianças, quando ficou sozinha sem o meu pai.

Maria olhou para ele e uma luz apareceu no seu olhar.

- Jorge, lembras-te quando eu tinha medo e fugia para a cama dela e dormia agarrada aos seus braços?

Jorge sorriu com a lembrança - Sim, ela protegia a sua filha de todos os medos, de todos os seus fantasmas, isso não foi ser mãe? - Ao dizer isso, a voz do Jorge endureceu.

Maria ao ouvir aquela voz dura, sentiu algo dentro de si quebrar-se. Pela sua mente passaram as imagens desses anos todos que viveu com a sua tia e nelas viu todo o carinho, todo o amor que aquela mulher lhe tinha dado.

Reviveu os serões em que a tia não se ia deitar, para ficar junto dela em vésperas de exames da faculdade, para que ela pudesse estudar, quando, no dia seguinte às seis da manhã, já teria que estar levantada para ir trabalhar.

- Jorge. - Pronunciou o seu nome e ficou em silêncio.

- Sim, Maria? - Indagou Jorge.

- Como eu fui injusta com ela, como fui má, será que ela me vai perdoar?

- Claro, Maria. - Disse Jorge sorrindo ao mesmo tempo que acarinhava a sua cabeça. - Ela só espera uma palavra tua. "Mãe", no dia que ela a ouvir, será a mulher mais feliz desta terra e todo o seu sofrimento será enterrado na meiguice dessa palavra.

Estiveram mais algum tempo apreciando a paisagem, mas como estavam a ficar gelados, foram para o carro, quando Maria pediu:

- Jorge, vamos para casa? Preciso de a olhar nos olhos, sentir que a perdoei, sentir que já não a vou magoar mais, eu preciso do amor dessa mulher. - Limpando uma lágrima, terminou: - Preciso do amor da nossa mãe.

Jorge emocionou-se ao ouvir da boca da sua irmã, pela primeira vez na vida, chamar "mãe" à sua mãe e perdeu toda a vergonha do preconceito de que um homem não chora. Agarrou-se à irmã e chorou com ela.

Seguiram a caminho de regresso a casa. Maria, silenciosa, absorta nos seus pensamentos, nem reparava na paisagem, nem que seu irmão ia a seu lado, só voltando à realidade quando Jorge lhe disse:

- Maria, estamos em casa, queres que te deixe a sós com a mãe? - Perguntou Jorge olhando-a fixamente.

O batimento do seu coração disparou e uma tremura percorreu-lhe o corpo. Nesse momento, Maria viu que não estava preparada para enfrentar Sofia.

Não sabia que lhe dizer, se havia de lhe perdoar e aproveitar, a partir desse momento, todos os momentos para usufruir do amor da sua mãe e irmãos, ou se pegar nas suas coisas e ir para Peniche de vez.

Não respondeu ao irmão, pois também deixou de ouvir as suas últimas palavras.

- Maria, estás a escutar-me?

- Sim Jorge, estou a escutar-te, diz lá que estavas dizendo? - Respondeu Maria com um sorriso triste nos lábios.

- Perguntei se queres que te deixe a sós com a mãe ou queres que eu esteja a teu lado? - Voltou a perguntar, acrescentando a sorrir.

- Nem ouviste o que te tinha dito, não é verdade?

- Desculpa Jorge, não tinha ouvido, estava absorta nos meus pensamentos.

- Quero que venhas comigo sim. Tu dás-me calma e, se eu fraquejar, sei que estás ali para me dar forças.

PARTE XII

Entraram em casa. Maria dirigiu-se ao seu quarto, sem passar pela cozinha onde a tia Sofia estava. Jorge estranhou a sua atitude mas nada disse.

Chamou a sua mãe à sala e disse-lhe muito sério:

- Mãe, estive a falar com a Maria, não lhe digas nada, não lhe dirijas palavra. Deixa ser ela a vir ter contigo. Maria neste momento precisa de tempo para reflectir.

- Assim farei filho.

- Faça isso, mãe, porque Maria já chegou à conclusão que te ama, tanto como tu a amas. Mas o seu orgulho fá-la recuar, não estragues neste momento o que eu fiz na Serra da Estrela, ela virá ter contigo e, quando vier, será para te chamar mãe.

- Sim filho, farei como me dizes. Mas, diz-me lá, o que almoçaram?

- Nada mãe, apenas um café. Maria quis vir para casa, após uma hora de ali estarmos. Se tiveres aí algo que se coma, eu deito já mãos à obra. - Disse sorrindo e pondo a mão no seu estômago. - Vai preparando o que tiveres, enquanto eu que vou chamar a Maria para vir comer também.

Enquanto Sofia se dirigia para a cozinha para tratar do almoço, Jorge foi até ao quarto de Maria para a chamar. Ia para bater à porta, quando ouviu um soluço vindo de dentro. Parou e ficou a escutar.

Os soluços iam aumentando e Jorge, não se contendo, empurrou a porta, que apenas estava encostada, e foi até junto de Maria. Sentou-se na cama, abraçou-a e fê-la deitar a cabeça no seu ombro.

- Chora minha menina que te faz bem, deita para fora de vez essas mágoas. - Disse Jorge, com uma voz de carinho que fez impressionar Maria.

Nesse momento sentiu que não estava só, tinha um irmão maravilhoso que o soube ser no momento que ela tanto precisava de um ombro de alguém, que precisava duma palavra amiga.

- Vamos Jorge. - Disse Maria, limpando as suas lágrimas. - Vamos falar com a nossa mãe, eu não posso fugir ao destino e o meu foi ter encontrado uma mãe e três irmãos maravilhosos ao fim de trinta e um anos de vida.

Saíram do quarto de Maria, desceram as escadas em direcção à cozinha e Maria, quando lá chegou, parou a olhar para sua mãe, que estava de costas a preparar o almoço para eles.

Em silêncio, olhando o seu irmão, aproximou-se dela e, muito meigamente, abraçou-a. Sentiu-a tremer e, continuando abraçada a ela, disse-lhe baixinho:

- Não digas nada, deixa-me estar assim um bocadinho, não te vires para mim, deixa-me sentir em silêncio que tenho uma mãe.

Sofia não se conteve perante aquele gesto nobre da sua filha. Virou-se, agarrou-se a ela a chorar, e, balbuciando com as palavras entrecortadas pelos soluços, pediu-lhe:

- Perdoa-me filha. Eu errei contigo, eu não fui boa mãe, mas eu sempre te amei como tal, por ti eu sacrifiquei o meu amor de mãe, por esse amor eu tive este peso na minha consciência a acompanhar-me toda a minha vida.

- Mãe. - Pronunciou com medo, mas com todo o amor que Maria estava sentindo nessa altura. - A noite passada eu sonhei com os meus pais, felizes comigo, brincando comigo. Mas, depois, o sonho transformou-se num pesadelo, onde eu vi os meus pais sozinhos na sua casa, sem uma criança e a minha mãe deitada numa cama, sem falar, sem reagir por me ter perdido. Aí minha mãe, quando acordei, vi o quanto foi nobre o teu gesto, a vida que deste a meus pais, principalmente à minha mãe que jazia naquela cama. Só esse gesto a salvou. - Um grito de amor soltou-se do seu peito.

- Diz-me mãe, como não posso perdoar-te se tu salvaste a tua irmã? Se tu me fizeste feliz durante treze anos na presença daqueles dois seres maravilhosos, que me criaram! Que me amaram como se meus pais verdadeiros fossem! - Dizendo isso pegou nas mãos do irmão, que em silêncio assistia aquela cena de amor, juntou-o a si e com força abraçou os dois chorando, agora não de tristeza, mas sim de alegria por ter encontrado uma família ao fim de tantos anos de sofrimento.

- Amo-os, meu irmão, minha mãe. - Seus olhos brilharam de emoção ao pronunciar essas palavras.

Sofia chorava em silêncio, sem conseguir soltar qualquer som, mas, olhando para a imagem que se avistava no corredor que dava entrada para a cozinha, pronunciou:

- Obrigada minha Virgem, tu devolveste-me a minha filha, devolveste-me a alegria de viver, porque hoje, só quero viver para os meus quatro amores.

Maria ao ouvi-la dizer isso, replicou:

- Mãe, que fizeste tu ao longo desses anos todos, senão viver para nós os quatro? Eu é que fui egoísta e, fechada neste egoísmo, não vi o amor que me deste, os sacrifícios que por mim fizeste, foi preciso o meu irmão e o meu sonho de ontem me fazerem ver isso. Eu amo-te tanto, minha mãe. - Duas lágrimas rolaram por seu rosto abaixo.

Deixaram-se estar assim, abraçadas mais uns segundos, até que Sofia soltou-se e com o semblante preocupado exclamou:

- Meu Deus, Joana! - Gritou o nome da filha mais nova. - Como vamos dizer à Joana? Terei que castigar mais um inocente pelo meu erro do passado?

Um silêncio se fez sentir naquela cozinha e, como atraída por aquele apelo, Joana apareceu na porta da cozinha, alegre e sorridente.

Estava sentindo saudades da prima e vinha vê-la para juntas se fecharem no seu quarto e contarem seus segredos como sempre o fizeram.

- Que se passa? Porquê essas caras? Que foi mãe? Porque choras?

Como ninguém lhe respondia, Joana gritou desesperada:

- Maria, que aconteceu a minha mãe? Falem-me, não me deixem neste silêncio. - Sofia pegou no braço da sua filha mais nova, levou-a para a sala, seguida de Jorge e de Maria e fê-la sentar-se no sofá, confidenciando-lhe:

- Joana tenho algo para te contar, algo que sempre te escondi a vida toda. Só os teus irmãos é que sabem. Escondi para te poupar desgostos, mas já não posso esconder mais. És adulta tens que saber toda a verdade.

Joana olhou para ela fixamente e em seguida o seu olhar poisou no de Maria e viu um ar de tristeza, uma dor e naquele momento compreendeu tudo.

- Mãe, queres-me contar que a Maria é minha irmã? - Perguntou sorrindo, mas ao mesmo tempo com receio que não fosse isso e Maria ficasse a saber daquela forma brutal.

- Joana, como sabes isso? - A sua mãe gaguejou ao fazer essa pergunta. - Quem te contou? - E o seu olhar de reprovação poisou no de Jorge.

Joana seguiu o seu olhar e abraçando o irmão disse:

- Mãe, não acuses o meu irmão. Eu conto-vos como o soube e como essa notícia me fez feliz nesse dia. - Continuou a sua conversa sem esperar resposta. - Um dia, tinha eu catorze anos, estava dormindo e tive um pesadelo. Com medo dele, saí do meu quarto e fui ter contigo à sala, mas quando lá cheguei, ouvi tu a falares com o Jorge sobre isso, choravas a perguntar ao Jorge como um dia poderias ter coragem de contar isso a Maria e falaram muito e eu escondida atrás da porta ouvi tudo.

- Pensei que continuava a sonhar, e voltei para o meu quarto, sem me ter aproximado de vocês os dois.

- No dia seguinte, quando acordei, pensei que tinha sido um sonho e fui ao quarto de Maria para ver o que sentia por ela, se raiva, se amor de irmã e, naquele momento, Maria estava a vestir-se e o meu olhar deparou com o sinal que ela tem no peito.

- Abrindo os botões da sua blusa, mostrou aos presentes. - Olhem este coraçãozinho pequenino que tenho ao cimo do peito. Maria também o tem, igual ao meu. Nesse dia não tive dúvidas, eu não tinha sonhado e Maria era minha irmã. E, virando o seu rosto para Maria, pediu-lhe: - Maria mostra o teu sinal.

Maria olhou, já tinha reparado, tal como a sua mãe, que o sinal de ambas era igual e situado no mesmo ponto do peito e, com um gesto puxou a sua camisola para baixo, deixando o sinal à mostra.

E Joana continuou:

- Só não sei a história toda, mas a existência da Maria como sendo minha irmã, já a sei há cinco anos. Nessa altura Maria ajudou-me a ser mulher e, nessa altura, eu soube que tinha uma irmã. Maria soube-o ser, sem saber.

Acabando de pronunciar essas palavras, levantou-se do sofá e correu para os braços de Maria.

- Minha irmã querida, estava a ver que não chegaria nunca o dia de eu pronunciar estas palavras. O seu rosto esticou-se e beijou o de Maria com amor, com alegria.

Maria pensava que estava sonhando. Era bom demais para ser verdade, ter uma família a sério e saber que qualquer um dos elementos dessa família a amavam e nesse momento sentiu-se mal, por ter sido egoísta, por não ter sabido perdoar a Sofia, quando esta lhe contou a verdade.

Jorge para acabar com essa emoção que estava estrangulando a sua garganta, sorridente e em tom alto disse:

- Então esse almoço? Meu estômago já reclama.

Sofia levantou-se para ir pôr a mesa e Maria seguia-a, pondo o braço em cima dos seu ombros, dizendo:

- Perdoa-me minha mãe, eu farei tudo para merecer o teu nome. Perdoa o meu egoísmo, a minha raiva.

Sofia sorriu e, emocionada respondeu:

- Sempre mereceste Maria, não falamos mais nisso. Deixa-me saborear a tua presença nesta casa durante estes dias. Vamos recuperar estes anos perdidos.

Almoçaram todos num ambiente feliz, descontraído, não se tendo falado mais nesse assunto, como se fosse isso o normal em todos esses anos.

Entretanto...

Sérgio chega a casa, dá um beijo na esposa e, agarrando-a pela cintura, fê-la sentar-se no sofá e diz-lhe:

- Ainda tenho uns dias de férias, poucas vezes saímos de casa, queres ir dar um passeio à Serra da Estrela?

Luísa agarrou-se ao seu pescoço e olhando para ele com os olhos meigos, como a pedir-lhe algo, disse-lhe:

- Adorava, mas... sabes quem está na Covilhã? Sabes o que eu queria? - Dizendo isso fez os olhinhos meigos de maneira que ele não tivesse coragem de lhe negar.

- Sei sim Luísa, é a Maria que está na Covilhã e tu queres lá passar por casa para a ver não é? - Perguntou sorrindo.

- Sim, Maria quando saiu daqui não estava nada bem e eu fiquei preocupada e gostava de saber se ela está bem, embora saiba que ela está com a família, não está só, mas ela não ia bem quando saiu daqui.

- Está bem Luísa, vamos ver a Maria depois de irmos à Serra da Estrela, de caminho para casa passamos por lá.

Dois dias depois, às seis da manhã, Sérgio e Luísa saíram de casa a caminho da Serra da Estrela. Na véspera, Luísa havia telefonado à Maria a comunicar a ida deles à Serra da Estrela e a projectada visita que esperavam fazer-lhe, tendo Maria aproveitado para combinar que iria lá ter com a família e, no regresso, ficavam lá em casa a dormir no quarto de Joana.

Maria, assim que desligou o telefone, foi comunicar à sua mãe e irmãos o telefonema da sua amiga e do seu convite para eles lá ficarem em casa.

Sofia ficou feliz por saber que a sua filha tinha assim uma amiga, que olhava por ela lá em Peniche e, de bom grado, aceitou a ida deles lá a casa, bem como disse logo que sim, que iria com Maria à Serra.

Seus irmãos também acharam a ideia óptima e combinaram todos saírem de casa às nove da manhã, para irem ter com os amigos de Maria.

Às onze da manhã, Maria avistou o carro dos amigos e foi a correr ter com eles, deixando a sua mãe e irmãos admirados dessa espontaneidade dela.

- Minha filha deve ter muita amizade com este casal, senão não teria corrido para junto deles daquela maneira. - Pensou a Sofia com a felicidade estampada no rosto.

- Maria, que saudades já tinha de ti e ainda há tão poucos dias que saíste de lá. - Disse Luísa, abraçando a amiga.

Sérgio olhou para as duas e sorriu, depois deu um beijo a Maria. Sua mulher precisava duma amiga assim, ela sentia-se muito só e ficou feliz ao saber que Maria correspondia à amizade que Luísa nutria por ela.

Foram ter com a família de Maria e, para espanto da Luísa, ela apresentou-os como mãe e irmãos. Luísa não fez qualquer observação, mas ficou a pensar naquilo.

Foram visitar todos os recantos da Serra, tendo Jorge servido de guia, pois, devido à sua profissão, conhecia cada cantinho daquela beleza.

- Maria, que bonito é o teu irmão. - Disse Luísa sorrindo com ar de marota e a sondar... - É casado?

- Não, nem namora. - Respondeu Maria sorrindo e, indo ter com o irmão, abraçou-o dizendo: - Luísa, este é o melhor irmão do mundo, não tens nenhuma amiga para ele? - A gargalhada foi geral, deixando Jorge atrapalhado. Indo em seu auxílio, Sérgio atirou:

- Jorge, não é verdade que vais conhecer aquela minha aluna lá da Escola?

- Ah, sim, é verdade! - Disse Jorge sem saber a que Sérgio se referia, mas, olhando para ele, viu o seu piscar de olho e sorriu.

- Mãe, ficas aqui um bocado, enquanto vou ali com a Luísa ver aquele lindo recanto e tirar umas fotografias?

- Vai sim filha, mas olha, não canses a Luísa, olha o seu estado.

- Obrigada D. Sofia, mas eu sinto-me bem. - Luísa sorriu, apertando a mão de Sofia com carinho.

- Maria já te conheço bem, para me puxares para aqui algo se passa, que me queres contar? Que me queres falar?

Maria calou-se por segundos e, apertando a mão de Luísa como que para receber forças dela, começou a contar-lhe a história que a sua mãe lhe tinha contado, que era filha da Sofia.

Falou durante uns largos minutos, contando-lhe tudo sem omitir pormenores. A sua revolta ao saber a verdade; a forma como o irmão a fez ver que estava errada e como depois reagiu, acabando por aceitar os factos e aceitar a sua verdadeira mãe. E como isso hoje a deixava feliz.

Luísa estava sem fala, nunca tinha ouvido semelhante história e emocionada começou a chorar.

- Luísa que se passa? Porque choras? Tu não a aceitavas?

- Maria, eu choro emocionada, nada mais. Se a aceitava? Maria, a tua mãe é uma grande mulher, ela sacrificou o seu amor em prole da tua vida e da tua mãe adoptiva. Maria, essa mulher merece, mais do que ninguém, de ser chamada de mãe. Ama-a muito, como ela merece!

Ficaram ainda conversando sobre isso alguns momentos, até que se dirigiram para junto dos outros que as esperavam.

- Que namoro foi esse? - Perguntou Sérgio sorrindo.

Luísa não respondeu, aproximou-se de Sofia, deu-lhe um beijo no rosto e pediu-lhe:

- Posso chamá-la de tia? Já que perdeu a sua sobrinha? - Dizendo isso os seus olhos brilharam de amor e de orgulho por conhecer aquela mulher que ali estava à sua frente.

- Maria contou-te, Luísa? Quer vergonha, meu Deus! - Disse, pondo a mão no rosto para o tapar.

- Vergonha? Nunca mais me diga isso, a senhora foi a melhor mãe do mundo. - Acabou as suas palavras beijando-a novamente e acrescentou a sorrir - E será minha tia, quer queira, quer não!

- Serei sim Luísa, basta seres amiga da minha Maria como és. - Virando-se para Sérgio disse - Também posso ter um sobrinho? - Sérgio sorriu e concordou, sem perceber nada do que se estava a passar, mas Luísa como era mulher de surpresas, ela lá sabia que estava fazendo.

Luísa e Sérgio ficaram em casa de Sofia para, na quinta-feira, levarem Maria para Peniche. Assim, Luísa aproveitava e apanhava aqueles ares da Serra que lhe faziam tão bem.

Seis horas da tarde do dia seguinte. Lá fora o vento soprava forte, tinha sido um dia terrível de chuva e Maria sentiu a necessidade de estar só.

Nesses dias, tinha por hábito ficar à porta de casa vendo o vendo a bater ferozmente contra as árvores. Havia já muitos dias que Maria não ficava apenas consigo mesma e essa necessidade estava-se reflectindo na sua maneira de ser.

- Mas e apoderava dela.

Luísa imaginou que Maria estaria sofrendo naquele momento por Pedro e sentiu vontade de lhe dizer que o poeta não era outro senão o seu Pedro.

- Não posso, eles vão-se encontrar e se eu disser, nenhum deles tem coragem de se dirigir ao outro. Assim eu dou um empurrão e o destino fará o resto.

Chegou quinta-feira. Logo pela manhã, o casal e Maria, partiram para Peniche, mas não sem antes Maria prometer à sua mãe que viria mais vezes visitá-la.

Sofia ficou a chorar, mas ela sabia que a sua filha estava bem entregue. Luísa era uma boa amiga e algo que Maria precisasse tinha os seus amigos junto dela para a ajudar.

Mas, como mais uma vez Maria se havia recusado a aceitar dinheiro do irmão, ele chegou-se ao pé de Luísa e pediu-lhe para guardar aquele dinheiro e, caso visse alguma necessidade na irmã que lho entregasse. Assim, ela já não teria coragem de o devolver.ria, está muito frio aí fora, vem para dentro. - Chamou Luísa.

- Deixa-a Luísa. Quando Maria vai para a porta da entrada, em dias de vento forte, é sinal que o seu espírito está tão revolto como esse vento e essa luta entre os dois faz Maria se acalmar. - Exclamou Sofia com um olhar triste.

- Mas ela parecia tão bem ontem e hoje está assim, tia Sofia. - Disse Luísa

- Maria sempre foi assim, Luísa. Quando as saudades lhe batem forte, a solidão e o silêncio dela falam mais alto que o som duma aparelhagem e, nessas horas, temos que a deixar isolar-se. Nada melhor para ela do que um dia como o de hoje e àquela porta da entrada. - Explicou Sofia, que tão bem conhecia a sua filha após os longos anos de Maria ali em sua casa, e sempre havia tido essa atitude quando a tristeza 

- Está descansado Jorge, eu não vou deixar a tua irmã passar necessidades. Eu estou perto dela e, como vou a casa dela com frequência, vou vigiando o seu frigorífico. - Disse Luísa aceitando o dinheiro, comovida por ver como Maria tinha sorte de ter uma família assim.

Pararam pelo caminho para almoçar e às duas e meia da tarde chegaram a Peniche. Sérgio sempre com a sua boa disposição não deixou Maria pensar em nada, estando sempre a dizer piadas que faziam Maria e Luísa rir e foi nessa boa disposição que deixaram Maria em casa, tendo seguido depois para a deles.

Maria arrumou as suas coisas no lugar, tomou um duche e resolveu ir ver seu "Amigo O Mar". Já tinha saudades, havia muitos dias que lá não ia e estava precisando da sua energia.

Sentia-se sozinha, desesperada, estava-lhe custando aquela solidão. Agora que sabia que tinha uma mãe e irmãos... Mas não podia ficar na terra, tinha que procurar novos horizontes, tinha que procurar Pedro, tinha que saber quem era o poeta que lhe escrevia aqueles poemas.

Tudo isso mexia com o seu sistema nervoso, tudo isso a fazia desesperar e não aguentando mais, pegou na sua mochila e saiu para ir ver o mar.

- Tenho que me acalmar, porquê esta inquietação? Eu sei que jamais vou encontrar o Pedro e esse poeta não preenche os meus sentimentos. - Enquanto pensava nisso tudo, ia chegando ao seu cantinho, junto à âncora, o seu lugar preferido.

PARTE XIII

Quando lá chegou, mais uma vez, como num ritual, descalçou-se e ficou parada a olhar o mar. Estava obcecada com tantos sentimentos contraditórios, deixando-se ali estar por momentos a olhar o infinito do mar.

- Disseste-me um dia, que eras meu amigo, que te podia confidenciar os meus segredos e eu tenho sempre feito isso, que tens feito tu? Tens-me ajudado? - Pela primeira vez revoltou-se contra o mar, como se ele fosse um Deus que pudesse fazer com que ela se encontrasse.

Desviou a vista do mar e quando se ia sentar na areia deparou com uma toalha e um caderno ali poisados. Olhou para todo o lado e não viu ninguém.

- Alguém se foi embora e esqueceu-se disto aqui. - Pensou e, num gesto de curiosidade, baixou-se, passou a vista pelo caderno que se encontrava fechado e, nesse momento, a curiosidade foi mais forte que a sua educação. Pegando no caderno desfolhou-o e...

- Meus Deus, não pode ser, este caderno pertence ao poeta. Esses poemas são dele, esta letra é igual aos outros poemas que li na casa de Luísa.

Sentiu um calafrio a percorrer-lhe o corpo, ao mesmo tempo que na sua testa umas gotas de suor começaram escorrendo. Sem saber o que fazia dirigiu-se ao mar, ainda com o caderno nas mãos.

Quando ia a passar pelo barco que estava atracado na areia, viu um homem de cabelos escuros, ondulados, de calça e camisa de ganga, sentado na areia com a cabeça entre as mãos como se estivesse rezando ou chorando.

Parou, ficou a olhá-lo, sem saber se havia de lhe falar ou seguir em frente, ainda sem se ter apercebido que nas suas mãos carregava o caderno dos poemas.

Estava para seguir em direcção ao mar, mas recuou e voltou para junto do homem. Enchendo-se de coragem falou:

- Boa tarde senhor, aquela toalha e aquele caderno ali em cima são seus?

O homem sem levantar a cabeça e sem dela tirar as mãos, abanou-a num sinal afirmativo.

- Desculpe, mas eu vi aquelas coisas e pensei que fosse de alguém que se tivesse esquecido delas ali.

O homem levantou a cabeça e apenas viu o seu caderno nas mãos de Maria. Sem olhar para o seu rosto, fez um sinal inquiridor. Maria seguiu o seu olhar e envergonhada disse:

- Desculpe a minha curiosidade, não me contive e abri o seu caderno. Que poemas tão lindos... - E dizendo isso olhou para a cara que estava à sua frente e ouviu:

- Maria, és tu Maria? Não, eu estou sonhando, eu deveria ter adormecido e estou sonhando, não pode ser verdade.

Maria ouviu esse grito de desespero e olhou fixamente para o rosto que estava à sua frente.

- Pedro, és tu? O Pedro da minha terra? És tu?

Entre ambos houve um silêncio, apenas cortado por seus nomes, saídos de ambas as bocas, ora o Pedro chamando pelo nome de Maria, ora Maria chamando pelo nome do Pedro, sem desviarem os olhos um do outro como se estivessem hipnotizados.

Maria emocionada deixou cair o caderno das mãos. Quando se baixava, encontrou o rosto do Pedro junto ao seu, pois havia feito o mesmo gesto, baixando-se para pegar no caderno que jazia no chão. Pedro não se conteve e, mais uma vez, agarrando seu rosto, chamou o seu nome.

- Maria, tu aqui, a minha Maria. - Ficou com o rosto da Maria nas suas mãos, olhando para ele com as lágrimas nos olhos e a emoção na voz.

- Pedro, diz-me, quem escreveu estes poemas? Foste tu? E aquele que li na casa da minha amiga? E aquele que vinha com uma rosa que deixaram na minha casa? Foste tu o autor de todos esses poemas?

- Sim, Maria, são meus. Mas que estás a dizer? Já os lês-te? Que poema é esse que vinha com uma rosa?

- Para quem os escreveste Pedro? - Perguntou Maria como se não tivesse ouvido a pergunta.

- Para ti, Maria, a única mulher que amei em toda a minha vida, a mulher que conquistou o meu coração de adolescente e deu forças a este coração adulto para sobreviver sozinho. A mulher com que sonhei todos estes anos vir a ter nos meus braços, vir a ser feliz com ela e hoje estás aqui Maria, diz-me... - Um gritou rouco soltou-se de seu peito.

- Diz-me que não estou sonhando Maria, diz-me que és mesmo tu que está aqui à minha frente, olhando-me com esse azul mar que são os teus olhos.

- Pedro, sou eu sim, a Maria. Mas eu não acredito que ao fim destes anos de busca constante, de tanto sofrimento, tu estejas à minha frente, agarrando o meu rosto. - Dizendo isso, sentiu as suas forças fugirem-lhe e desmaiou, tendo Pedro reagido a tempo, amparando-a nos seus braços.

- Maria, acorda. Meu Deus, não me a tires agora que a encontrei. - O seu grito fez-se ouvir de tal maneira longe, que as ondas, como se atraídas pelo seu apelo, vieram em força, molhando os seus pés. Pedro molhou as mãos e passou-as pela testa de Maria que, com a emoção, estava ardendo.continuava lutando para que Maria reagisse, para que Maria acordasse desse sono profundo, de emoções. Molhando as mãos, alternando-as, ora na água, ora na testa de Maria, enquanto gritava cada vez mais alto.

- Maria não me deixes, eu quero-te junto a mim, por favor acorda, olha para mim, vê o meu desespero, abre os teus olhos.

Maria como que sentindo esse grito dentro do seu ser, abriu os olhos e viu Pedro debruçado sobre ela, chorando e gritando o seu nome.

- Pedro, és tu? Não me enganes, eu sei que estou quase louca de tanto sofrimento, mas deixa-me acreditar que ao fim de todos estes anos, eu estou contigo. - Dizendo isso foi-se levantando devagarinho com a sua tez pálida, tendo os braços de Pedro para a segurar.

Pedro não a deixando levantar-se, pegou no seu rosto, aproximou sua boca da de Maria, encostou os lábios ao de leve e, não se contendo, beijou-a apaixonadamente, deixando-a sem respiração, fazendo-a sentir que estava voando sobre as ondas do seu mar querido. Só depois lhe respondeu:

- Estás a sonhar Maria? Estás louca? Então eu quero para toda a vida essa tua loucura, porque sou eu o teu Pedro, que está aqui junto a ti. Foi esse teu Pedro que te beijou e que continuará a beijar-te para o resto da vida, porque não te vou deixar fugir pela segunda vez, meu amor.

Maria não respondeu. Sentou-se, aninhando-se nos braços de Pedro. Deitou a cabeça no seu peito, sentindo a sua respiração, o seu hálito, a sua pele ardendo, deixando-se estar assim sem se mexer, com medo que ao mexer-se o seu sonho terminasse e em vez dos braços de Pedro encontrasse apenas a areia fria da praia.

Fechou os olhos e deixou-se levar por aquele encanto que a fascinava, que envolvia os seus membros, os seus sentidos,

Apenas sabia que aquele momento era toda a sua vida, todos os seus sonhos acumulados nesse momento mágico. Vivia o encontro com o homem da sua vida, naquele momento em que o desespero estava tomando a sua alma, deixando-a já sem forças para continuar a sua busca.

Abriu os olhos com medo mais uma vez e viu o negro dos olhos de Pedro olhando para si.

Colocou as mãos no seu peito, para sentir o seu coração e sentiu que ele pulsava tão forte como o seu, enquanto ele mexia na sua longa cabeleira preta, levantava o seu rosto e beijava os seus olhos, que estavam cada vez mais azuis, o azul da emoção, da paixão, esse azul que fez Pedro sonhar uma vida inteira, não estando a acreditar que finalmente esses olhos o estavam fixando com meiguice, com amor.

- Meu amor, agora conta-me lá essa história dos meus poemas e da rosa, porque não percebi se deliravas ou se estavas falando a realidade.

Maria contou-lhe a sua ida à casa de Luísa, da sua leitura e do poema que ficou na sua casa acompanhado com uma rosa.

Pedro ouviu essa história em silêncio e sorriu, porque nesse momento compreendeu o porquê de Luísa querer ficar com os seus poemas e, levantando os olhos aos céus, sussurrou:

- Obrigado meu Deus, por teres posto em nosso caminho, essa amiga sincera. - Apertando Maria contra o seu peito, que ouviu a sua prece em silêncio, acrescentou:

- Eu sabia meu amor, que Luísa estava fazendo das suas. Ela tinha-me jurado que ia mostrar-te os poemas, mas eu não acreditei e felizmente que isso aconteceu.

Se não fosse essa amiga do coração, hoje não estávamos aqui, porque eu tenho vindo aqui todos os dias a ver se encontrava a surpresa que ela disse que me esperava e essa surpresa hoje apareceu.

Dizendo isso com os olhos brilhantes, beijou-a mais uma vez, tendo Maria reagido àquele beijo, correspondendo com toda a força do seu amor, do seu coração sedento desse amor acumulado durante dezassete anos.

Continuaram assim abraçados durante horas, falando das suas vidas e dos seus desencontros. Nem deram pelas horas passarem, até que fixaram o olhar num ponto no horizonte, brilhando como fogo. Desviaram a vista dele, olhando-se, dizendo Maria com voz emocionada:

- Pedro, olha o pôr-do-sol, lindo, como abençoando o nosso encontro.

- Sim, Maria, o nosso Ponto no Horizonte. O nosso pôr-do-sol, o nosso guia, esse que nós víamos todos os dias, sem estarmos juntos, mas que hoje nos juntou.

- Vamos embora Pedro? Estou a ficar gelada. - Perguntou Maria com voz meiga, essa voz que Pedro nunca esqueceu, essa voz que o acompanhou toda a vida como uma melodia inesquecível.

Saíram da praia, descalços e de mãos entrelaçadas, pareciam dois adolescentes. De seus olhos irradiava uma luz que não era habitual em nenhum deles.

Ambos haviam sofrido muito durante esses anos de afastamento e hoje nem queriam acreditar que estavam ali os dois, sozinhos, eles e a paixão deles "o Mar", de mãos juntas, de olhos colados um no outro, como se nada mais no mundo existisse para eles.

- Maria escuta-me, eu já não te quero deixar. Tenho medo de acordar amanhã e sentir que te perdi novamente. Vamos jantar os dois, eu conheço um sítio lindo, uma casa acolhedora que é dum colega meu lá da Academia e o João arranja-nos uma mesinha isolada para nós ficarmos à vontade.

- A tasca do João? - Perguntou Maria sorrindo, lembrando-se daquela noite em que lá esteve com Luísa e com seus colegas.

- Sim. - Respondeu Pedro. - Já conheces?

- Conheço. Fui lá com a Luísa e os meus colegas quando mudei de casa.

Pedro sorriu.

- Marotos, no dia que fui dar aulas à tua turma perguntei se alguém sabia o porquê da tua ausência e responderam-me que não sabiam.

- Pedro, vamos, mas temos que mudar de roupa.

- Fazemos assim, deixo-te em casa, vou vestir-me e depois passo por lá para te ir buscar.

Como tinham combinado, Maria ficou em casa, tomou um duche, vestiu-se e várias vezes foi ao espelho, ela queria estar bela naquela noite para os olhos de Pedro. Pensando isso sorriu de felicidade e beliscou-se para ver se estava sonhando ou não.

- Deus, como é possível ser-se tão feliz em tão poucos dias? Ganhei uma mãe, três irmãos e hoje tu puseste o Pedro no meu caminho. Diz-me meu Deus, eu mereço tal felicidade?

Com tal pensamento, saiu do quarto e foi sentar-se na sala, acendendo um cigarro e deixou os seus pensamentos voarem até que ouviu a campainha da porta.

Foi abri-la e à sua frente estava Pedro, vestido com uma roupa desportiva, mas elegante. Maria ao olhá-lo pensou:

- Este homem é meu? Pertence-me? Nem posso acreditar em tal coisa.

Enquanto Maria se perdia nos seus pensamentos, olhando-o fixamente, Pedro não desviava os seus olhos daqueles olhos azuis e pensava também:

- Estou a sonhar? Estarei aqui à porta de Maria, falando-lhe, tocando-a e beijando-a? - E pensando no beijo, agarrou-a pela cintura e mesmo ali na porta beijou-a, primeiro com suavidade, depois com paixão, como se tivesse medo que ela lhe fugisse e não mais fosse tocar nesses lábios que tremiam ao sabor dos seus.

- Entra Pedro, vem conhecer o meu cantinho, quero que vejas a casa onde eu passo os meus dias quando não estou nas escolas.

Pedro olhou para tudo ao pormenor e gostou bastante da casa. Pegando-lhe no braço e com um sorrindo maroto disse-lhe:

- Vamos jantar Maria, senão daqui a pouco já não saímos do teu cantinho e passa a ser o meu também. - Maria corou ligeiramente e nesse momento, Pedro teve a certeza que Maria seria a sua mulher, a sua companheira num futuro muito próximo.

Jantaram na tasca do João, num canto guardado para os namorados, que o Sr. João fazia questão em o manter num ambiente romântico, diferente do resto da sala.

Era um canto divido com suportes de verga, forrados de tecido azul, onde a meia-luz que vinha dos candeeiros de pé alto, com um abajur azul, que se encontravam junto a cada mesa, que eram quadradas, com toalhas azuis e cada uma, apenas com duas cadeiras com almofadas do mesmo tecido e cor das toalhas, tudo numa sintonia a condizer com as velas acesas, com uma música ambiente, música essa que ajudava a falarem mais abertamente.

Falaram muito e Maria contou toda a sua vida após ter saído da terra onde vivia com os pais adoptivos e quando chegou a altura de contar a sua história recente, quando soube que Sofia era sua mãe, as lágrimas correram-lhe pelo rosto abaixo. Mas arranjou coragem e contou tudo ao Pedro, não poderia esconder-lhe nada naquele momento mágico.

Pedro emocionou-se com a história de Maria, levantando a sua mão, passou-a pelos olhos de Maria, limpando-lhe uma lágrima e, ficando com ela nas suas mãos, olhou-a fixamente, ao mesmo tempo, que lhe dizia:

- Não sofrerás mais meu amor, minha menina de olhos azuis, vou dedicar a minha vida a fazer-te feliz e aos nossos filhos.

Ficaram uns segundos de mãos dadas, olhos nos olhos, em silêncio, como se fosse pecado quebrarem essa magia. Mas Pedro olhou o relógio e exclamou.

- Vinte e duas e trinta. Sabes amor onde gostaria de te levar agora? - Perguntando isso os seus olhos brilharam.

- Sim Pedro, onde eu gostaria de ir também, ela merece saber do nosso encontro.

Pedro olhou Maria com um olhar espantado perguntando:

- Como sabes que era a casa de Luísa?

- Porque estamos em sintonia, meu amor e se hoje estamos juntos a mais ninguém o devemos. Disse sorrindo, fazendo uma carícia no rosto de Pedro, que aproveitando suas mãos no rosto as encostou a seus lábios, dando-lhe um beijo de devoção, de amor, de paixão.

Saíram da tasca do Sr. João, depois de lhe terem agradecido a noite agradável que ele lhes tinha proporcionado nesse recanto delicioso, que convidava a uma noite romântica.

Entraram no carro de Pedro e seguiram em direcção a casa de Luísa. Pararam frente à casa e viram a luz da sala acesa.

Olharam-se e sorriram, um sorriso de cumplicidade, de vergonha por terem que aparecer juntos em casa da amiga, mas ela merecia que eles ultrapassassem essa vergonha, ela precisava de saber do seu encontro.

Bateram à porta e Sérgio veio abrir e ficou mudo ao ver o seu amigo acompanhado de Maria. Não queria acreditar no que os seus olhos estavam vendo, mas reagiu, e em silêncio e com um sorriso maroto no canto dos lábios, fê-los entrar para a sala, onde Luísa descansava deitada no sofá.

- Meu amigo, eu não acredito, tens que me contar o que se passou. Luísa vai delirar quando vos vir juntos. - Disse Sérgio a caminho da sala, emocionado por ver os olhos do seu amigo irradiarem tamanha felicidade, esses olhos, a que ele se habituou ao longo desses anos de amizade, a ver sempre tristes e nostálgicos.

- Viemos cá para isso Sérgio e para agradecer àquela marota, tudo o que ela fez por nós, sem ela não era possível eu e a Maria estarmos aqui hoje juntos na tua casa. - Disse Pedro, passando o braço por cima do ombro do seu amigo, dando-lhe uma palmada nas costas.

Maria ia à frente deles e Sérgio puxou Pedro para a cozinha, para ele lhe contar todos os pormenores sem ser à frente de Maria e ela estaria mais à vontade para falar sozinha com a Luísa.

- Maria, que fazes aqui a estas horas? Aconteceu alguma coisa? - Disse Luísa levantando-se do sofá, com aspecto preocupado.

- Não Luísa, vim cá falar contigo com... - Virando a cabeça para trás sorriu ao ver que Pedro e Sérgio não estavam atrás de si, compreendendo que teriam ido para outro lugar da casa, para falarem à vontade.

- Maria, responde, estás com um ar que não é habitual em ti, uma luz nesse olhar que nunca vi e com... com quê? Porque paraste de falar? - Luísa estava a ficar preocupada com o ar enigmático da sua amiga.

Maria, calmamente, sentou-se no sofá ao lado de Luísa. Pegando na sua mão e, com uma voz carinhosa e cheia de emoção, agradeceu:

- Obrigada minha amiga por me fazeres encontrar o meu poeta. - Dizendo isso sorriu.

- O teu poeta? Conheceste-o? Onde? E porque estás feliz? O amor que tinhas ao Pedro, que é feito dele? - Luísa já pensava que Maria tinha encontrado a pessoa errada e o seu semblante mostrou-se preocupado.

- Pedro? Que me importa o Pedro? Eu vi que amo esse poeta que escreveu os poemas que me mostraste e que me mandou aquele que deixaste lá em casa.

- Maria, pensa bem. - Luísa já sentia pena do seu amigo Pedro, que tanto amava aquela mulher que estava à sua frente e ela agora apaixonara-se pela pessoa errada, sabe-se lá quem e o porquê dele ter dito que esses poemas eram dele.

- Que se passa Luísa? - Maria estava perdida de riso, mas queria dar uma liçãozinha a essa marota que, apesar de ser ela a causadora da sua felicidade, a fez estar tantos dias na ignorância.

- Não pode ser Maria, conheceste a pessoa errada, o homem que escreveu aquele poema para ti, foi...

Quando ia falar no nome desse poeta, à entrada da sala estavam Pedro e Sérgio que, ouvindo a voz alterada de Luísa, foram ver o que se passava, tendo ambos ouvido a ultima frase.

- Este aqui, minha amiga. - Disse Pedro com um sorriso nos lábios, correndo para a sua amiga, abraçando-a com força e dando-lhe um beijo no rosto, agradeceu, com voz emocionada:

- Obrigado minha amiga, devolveste-me a felicidade.

Luísa ficou sem fala, ora olhava para Maria, ora para Pedro, ora para Sérgio, para ver qual dos três lhe esclarecia o que se estava passando.

Sentou-se sem forças, mas aos poucos foi olhando para cada um e foi compreendendo e viu que Maria estava brincando com ela, numa espécie de vingançazinha de todo esse seu silêncio anterior.

Maria já com medo que toda aquela emoção fizesse mal à Luísa, devido ao seu estado, sentou-se ao seu lado e, em conjunto com Pedro, contou-lhe o seu passeio à praia, como se tinham encontrado e como se tinham reconhecido após dezassete anos de separação.

- Maria, Pedro - Luísa estava emocionada ao pronunciar os seus nomes. - Como estou feliz! Eu sabia que ia conseguir juntá-los, mas, confesso, já estava a ficar desesperada com todos esses desencontros. - Dizendo isso, levantou-se do sofá, chamou Sérgio à cozinha e foram buscar uma garrafa de champanhe para comemorar esse encontro.

Ao ficarem a sós na sala, Pedro saiu do sofá onde estava e sentou-se ao lado de Maria.

- Meu amor, como estou feliz. - Dizendo isso beijou-a mais uma vez, beijo esse que foi interrompido pela entrada do casal, que ficaram parados na entrada da sala com os olhos felizes ao verem os seus amigos finalmente juntos.

Maria corou ao vê-los, mas fingiu aproximando-se de Luísa tirando-lhe os copos da mão, fazendo-a sentar-se novamente.

- Quero fazer dois brindes meus amigos. - Disse Sérgio. Abrindo a garrafa, continuou: - Um para a vossa felicidade e outro para a chegada dos meus gémeos.

- Gémeos? Como sabes? - Perguntou admirada Maria.

- Hoje senti-me indisposta e Sérgio levou-me ao médico, pois a viagem poderia ter-me feito mal. Fiz uma ecografia, para ver se estava tudo bem e, qual o nosso espanto, lá estavam os gémeos - Os meus bebés estão bem, Maria. - Disse Luísa muito feliz.

- E... - Sérgio interrompeu Luísa. - Nós queremos convidar-vos para padrinhos. Se for uma menina e um rapaz chamar-se-ão, ele, José Pedro, ela, Maria, é assim que vamos chamar à nossa Nina.

Maria olhou para o Pedro, que disfarçadamente tentava esconder uma lágrima no canto do olho, pela emoção de ter assim amigos tão sinceros, tão queridos.

- Que silêncio. - Disse Luísa. - Não me digam que não aceitam o nosso convite?

- Claro que aceitamos Luísa, com muito prazer mesmo. - Disseram ambos em simultâneo. - Isso será o apogeu do acumular da nossa felicidade termos os Josenina no nosso colo a serem abençoados por Deus.

- Josenina. Só tu, Pedro, podias ter uma ideia dessas. Mas gostamos desse nome ao referirmos os dois, não é Sérgio? -Sérgio sorriu, abanando a cabeça num sinal afirmativo. Estava emocionado demais para articular qualquer palavraPedro e Maria saíram da casa do Sérgio já passava da uma da manhã, mas, como ainda estavam de férias, no dia seguinte poderiam dormir mais um bocadinho. Pedro levou Maria a casa, mas antes, ainda passou pela praia pois, mais uma vez, eles queriam ver o mar

Parou o carro frente ao mar e ficaram ali sentados de mãos dadas, olhando-se em silêncio, cada um nos seus pensamentos, não querendo acreditar que aquele dia fosse real

Ambos tinham medo de regressar a casa e no dia seguinte acordarem e ver que tudo aquilo tinha sido um sonho das suas almas ansiosas.

- Maria. - Falou finalmente Pedro, aproximando o seu rosto do dela. - Como eu te amo, como pude passar estes anos todos sem a tua presença, sem mergulhar em teus olhos? - Dizendo isso passou os dedos pelos olhos de Maria, fechando-os, aconchegando depois a sua boca à dela beijando-a muito suavemente, como se tivesse medo de feri-la.

Ainda estiveram junto ao mar dentro do carro, amando-se, durante uma hora, até que Pedro a levou a casa.

Beijou-a mais uma vez à despedida dizendo baixinho:

- Amo-te, minha menina.

Mimo esse a que Maria retribuiu, também baixinho ao seu ouvido:

- Também te amo muito, Pedro. - Saindo de seguida do carro a sorrir e acenando a mão de despedida.

Pedro ainda ficou ali a olhá-la a entrar no prédio, não queria ir-se embora, tinha medo de a perder novamente.

- Não penses assim Pedro. Já não a perdes nunca mais, porque ela é tua, assim como tu és dela. - Disse a voz do seu subconsciente.

Pedro a sorrir arrancou com o carro, indo com a cabeça e os pensamentos nas nuvens. Estava feliz demais, havia tantos anos que não sentia essa felicidade, que tudo aquilo lhe parecia ser uma mentira, um sonho...

PARTE XIV

Passaram-se três meses, após o encontro dos dois. Nesses três meses viverem intensa felicidade, todos os dias se viam, todos os dias se amavam, mas um dia, Pedro sentindo-se sozinho em casa, decidiu pedir Maria em casamento.

Já nada significava ficarem separados todas as noites, porque o seu amor estava sólido, tinha bases, a base do sofrimento que sucedeu após a partida de Maria da terra e hoje solidificado com o encontro dos dois, por isso, que faziam separados? Se podiam ser felizes os dois juntos?

Sábado à tarde, Pedro telefonou a Maria e pediu-lhe para vestir a mesma roupa que vestia no dia em que se encontraram na praia e que o esperasse junto à âncora, pois ele iria lá ter.

Maria estranhou por Pedro não a ir buscar, mas, como sempre, a descrição foi a sua arma e concordou. Às quinze horas saiu de casa em direcção à praia.

Eram dezasseis horas e Pedro sem chegar. Maria estava a ficar desesperada.

- Que se passa, meu Deus? Que é feito do Pedro? Sempre tão pontual, aconteceu algo. - Disse chorando, já sem se conter.

Estava com o rosto entre as mãos, chorando baixinho, apenas deixando as lágrimas rolarem por ele, quando sentiu umas mãos apoiadas nos seus ombros.

- Que se passa meu amor? - Perguntou Pedro.

- Pedro... Que se passou? Aconteceu-te alguma coisa? Que cara é essa? Diz-me por favor. - Um grito rouco de preocupação saiu de sua garganta.

Pedro sorriu e tirando a mão que escondia atrás das costas, apareceu com um papel e uma caixa.

- Maria toma, foi isso que me aconteceu. - Dizendo isso deu-lhe a folha à mão.

- Que é isto Pedro? Que significa este papel? - Perguntou espantada.

- Olha para ele. Comprei o teu apartamento à tua senhoria. - E estendendo a mão que continha a caixa, abriu-a devagar, dizendo:

- E este é o anel que vai fazer de ti minha mulher, meu amor, se me disseres sim! - Pegando no dedo de Maria, esticou-o e enfiou nele um lindo anel, um solitário. Acompanhou o gesto com estas palavras: - Quero que cases comigo, minha Maria.

- Pedro! - Apenas conseguiu dizer.

- Maria, faz hoje três meses que nos encontrámos neste lugar. Será este lugar a testemunha do nosso amor e por isso era aqui que te queria pedir em casamento, olhando para ti, tal como te vi após dezassete anos de afastamento, descalça, com esse fato de treino, branco e azul, olhando os teus olhos a fazerem inveja ao mar. Eu amo-te Maria, nada mais me faz ficar afastado de ti.

Maria abraçou Pedro e, após um silêncio prolongado, pronunciou:

- Sim Pedro, quero ser tua esposa, não consigo viver mais tempo longe de ti. - Palavras, essas seladas com um beijo longo, apaixonado, como só eles o conheciam.

Um mês depois Maria levou Pedro à Covilhã para ele conhecer a sua família e participar-lhes o casamento, que teria lugar dentro de um mês, numa cerimónia simples, tendo apenas Luísa e Sérgio como padrinhos e a família de Maria a assistir.

Sofia não cabia em si de contente ao ver a sua menina com os olhos a irradiarem de felicidade. O seu sonho estava-se realizando, ter os seus filhos todos felizes, sem mágoas nos seus corações, sem dor, apenas paz e luz.

Depois de saírem da Covilhã, Maria e Pedro, foram à casa do Sérgio e Luísa para os convidar para padrinhos do seu casamento, o que eles aceitaram com alegria, mas...

-Não vai ninguém ao teu casamento Pedro? - Perguntou Luísa.

- Não. Queremos uma cerimónia simples, só vocês os dois e a família de Maria.

Luísa calou-se, mas a sua cabeça começou a magicar.

- Não, não posso deixar em branco um amor como o deles, já sei!.. - Pensou batendo a mão na testa.

- Que foi Luísa? - Perguntou Maria, que já conhecia essa expressão na Luísa quando algo estava tramando.

- Nada Maria. Lembrei-me que tinha que comprar uma roupa bonita para o teu casamento. - E sorriu malandra.

Maria não acreditou nessa história, mas sabia que dali já nada levava e não insistiu mais.

Luísa sabia que contando ao Costa, era o mesmo que contar a toda a Academia e no dia seguinte foi lá ter com ele, como se fosse tratar de trabalho.

- Bom dia Costa, vim trazer estes documentos. - Disse sentando-se e continuou. - Esta barriga já me vai pesando, não posso estar muito tempo de pé. - Sorriu.

- Como tens passado menina? Esses bebés portam-se bem? - Perguntou Costa sorrindo.

- Sim, são uns anjinhos. Mas, mudando de assunto, lembrei-me agora de uma coisa.

Contou ao Costa a história de Maria e de Pedro, de como eles se conheceram em crianças, como a vida os separou e como a mesma os voltou a juntar, dezassete anos depois.

Costa ouviu tudo aquilo emocionado e mais emocionado ficou ao saber que Maria e Pedro se iam casar dali a um mês.

Como compreendendo a ideia de Luísa, o Costa propôs:

- Que dizes Luísa de organizarmos uma festa no dia do casamento? Sabes que esta Academia funciona como uma família, juntávamo-nos todos e fazíamos uma festa aos pombinhos.

Luísa ficou radiante com a ideia, pois que coincidia com a sua. Ficaram a combinar alguns pormenores e o Costa depois faria o resto, assim como avisar os restantes elementos da Academia.

Chegou o dia do casamento. Maria entrou na Igreja, vestida de noiva, com um vestido simples, branco, sem véu, com os seus lindos cabelos soltos, caindo em cascata pelos ombros, uns brincos de pérola muito pequeninos a condizer com o colar de pérolas, muito discreto também.

Estava linda e Pedro, que já a esperava no altar, olhava para ela, de braço dado com o seu irmão, imaginando que estava a ver uma deusa caminhando ao seu encontro.

Estava tão absorta olhando para Pedro, o seu amor, que só quando ia a meio da Igreja é que viu que ela estava repleta de gente.

Olhou para um lado, olhou para outro e só viu rostos conhecidos, olhando-a com ar feliz e, nesses rostos, ela reconheceu os seus colegas e os seus professores da Academia.

Parou, mas Jorge puxou-a docemente a caminho do altar, dizendo:

- Anda maninha, isto é a prova de como tu és querida por toda a gente, anda o Pedro espera-te. - Jorge já sabia o que se ia passar, Luísa tinha-lhe contado a surpresa que iriam fazer a Pedro e Maria.

A cerimónia foi linda. O Padre falou de amor, de felicidade e de como é preciso saber sofrer para se conseguir obter o desejado na vida.

Após a cerimónia, Maria e Pedro, sem se aperceberem, foram empurrados para dentro dum carro que os levou à tasca do João, que nesse dia foi pequena para tantos amigos e para tanta alegria.

Ás vinte horas, o director da Academia dirigiu-se ao Pedro, entregando-lhe uma chave e dizendo:

- Aqui tens Pedro a chave do veleiro da Academia para a tua lua-de-mel. É a prenda da Academia para ti, meu companheiro e amigo. - Dizendo isso abraçou-o fortemente. - Sê feliz, meu amigo, tu mereces essa felicidade.

Pedro, sem nada dizer aos restantes, apenas Sofia e Luísa sabiam, pegou em Maria e, sorrateiramente, saíram pelas traseiras. Foram para o veleiro, tendo Pedro no caminho contado a Maria a oferta dos amigos da Academia. Maria pensou estar sonhando, casada com Pedro e com uma lua-de-mel em pleno alto mar.

- Meu amor, isso é o culminar da nossa felicidade.

À meia-noite o mar, como que para saudá-los, batia forte. Pedro e Maria abraçados no convés, olhavam a lua, que nesse dia estava grande, sorridente, brilhante e cheia como que reflectindo a alegria que ia nos seus corações e no céu viram um ponto brilhando. Pedro abraçou Maria, fazendo-a olhar esse ponto luminoso.

- Meu amor, olha aquele ponto no horizonte, que tanto brilha, a olhar para nós.

- É uma estrela Pedro! - Disse Maria fixando-a com os olhos húmidos da emoção que tomava conta dela nesse momento.

- A nossa estrela, amor, ela vai iluminar os nossos dias. A nossa estrela. - Repetiu Pedro apertando-a contra si. - Amo-te minha Maria do Mar. - Dizendo isso, e sem ambos tirarem os olhos desse ponto que os guiava, beijou-a terna e meigamente.


Fim



Bete Mota


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